Fé no Evoé:
Confissões dionisíacas na poética
e política de Artur Gomes
Igor Fagundes *
Depois das excitadas e excitantes Juras
secretas, de 2018, o poeta e artista multimídia Artur Gomes volta
a tornar pública sua jura de amor e fidelidade ao arcaico deus Dionísio
em O poeta enquanto coisa, de 2020, incorporando as ébrias forças
de Baco sob novos goles e ritos, tão poéticos quanto políticos, numa
contemporaneidade que avança em lama e vertigem e, assim, exige a potência do
mítico da palavra corpórea e originária.
Comparece ao ethos deste livro a mesma
embriaguez fulinaímica de sempre: a que toma, mediante o delírio atento frente
aos passos obtusos do ser e estar das gentes, cada palavra como taça, vinho
tinto e uma tinta capaz de, em contrapartida, rogar lúcida a passagem
dilacerada do humano pelas páginas turvas do mundo. Que, em prefácio, ressoe
agora-aqui a face mesma de assonâncias de Artur. Que em
pré-faces (a da melopeia, a da fanopeia, a da logopeia) o poeta se apresente,
por assim dizer, multifacetado, contaminando-nos com os tempos de seu ritmo
venéreo. Que se capte, enfim, o próprio escape das imagens ímpares e afiadas
pelo gume de Gomes, repetindo-se – com outros nomes e
aliterações – seus deleitosos jogos de palavras em nossa fome de análise e
anúncio: incorporemos, nessa prosa de abertura, a música de seus trocadilhos, a
curvatura das paranomásias no retilíneo das linhas do livro: a que verte vulva
em verso, Afrodite em afro-ditos de orixás em orgias com Ártemis e Hermes. Que
o veraz poeta, para aquém do denominado moderno, para além do já clichê
pós-moderno, para quem dos rótulos e taxonomias previstas pelas literárias
teorias, atravessa o pós-pós de tudo e mesmo o pó da historiografia.
Artur Gomes se exibe, ao revés, pré-antigo (tão dentro quanto
fora do chronos) na atualidade incorrigível de uma poesia dedicada à Gaia
(lê-se na dedicatória:
“e a Terra/Mãe/Terra a musa eterna dos
meus estados de surtos dos meus estados de sítio dos meus estados de cio”).
Enquanto bebe, no tempo
cronológico (“tempo de bestas”, “na caretice
dos bostas”), as lutas e lutos de sua época e século (“esse
país que atravesso corpo devassado em grito na cara do silêncio”), inebria-os
e subverte-os no tempo imemorial da Terra para fundar o Aion sem fundo do
instante-em-transe da experiência artística. Por isso, não basta citar, em
cacoete analítico, os tiques nervosos que convêm à crítica (mencionar
modernismos influentes, a geração beat, a poesia pop, a tropicália...) para
entender sua lírica. Nem seria preciso. Soaria até repetitivo elencar, neste
preâmbulo, as personagens caras a Gomes, forjando-o efeito do esbarro nelas
todas, do encontro com elas, das tramas e transas com obras e corpos do passado
e presente: o poeta já o faz e cumpre a coletânea como a dramaturgia de sua
errância pelo imaginário e pelo inconsciente, os quais derramam sobre o copo do
real e da consciência alteregos confessos e inventados – tudo o que for líquido
nos vasos sanguíneos do poeta alcooliza o poemário com o híbrido de fogo fátuo
e frios fatos.
Artur Gomes – assinatura por vir, heteronímica,
heteromórfica – assim apresenta em O poeta enquanto coisa suas
juras não mais secretas, mas públicas, ainda púbicas, aos afetos que compõem e
decompõem sua literaturavida. Seus versos são rascunhos, rasuras e ranhuras a
passar a limpo os nexos e os nervos de sua fatura formal e estilística,
deixando sobre a página tanto um rastro de unha quanto o esmalte dos escritos e
vozes que em sua alma avultam e nos dedos instauram cutículas.
Tais intertextos e intratextos, ou
ainda, tais hipertextos insaciáveis se disseminam pela obra na mesma proporção
com que se concentram em cada poema, lado a lado ou embaralhados; falseando nos
rebentos líricos as certidões de batismo e, em poligamia, proliferando as
certidões de casamento com as leituras/releituras de livros, bem como com o
folhear de rostos amigos, ou com o riso e risco do desconhecido, não obstante o
postergar de comprovantes de residência, de pátrias de origem: cada gesto, um
tanto Ulisses, desmente Ítacas, deslinda labirintos (do Minotauro?) ou mesmo
fios (de Ariadne?), teatralizando ad infinitum as alteridades que servem como
impressão digital provisória e polimórfica para alguma identidade fluida,
fragmentada, ao rés da fantasia.
Mas nada disso seria possível – nenhuma
conversa com livros, nenhum sexo com as líricas de um outro e de uma outra –
seria concreto sem a lascívia uma vez mais dionisíaca de um cérebro em gozo
sináptico, em psiké-análise, em psikécatálise, em psiké-catábase: esta que põe
no divã do poeta as divas Oxum e Afrodite atravessadas, fosse a sala do
analista também um templo pagão ou uma ilha de Lesbos, de modo que Artur construa
entre sua cama e seu karma de vate uma Igreja imoral/amoral do Reino de Zeus. E
dos muitos Eus que exilam hóstias e comungam com o jamais fixo e intransigente
credo. Esta, a sacralização do profano e do erótico, ou a profanação do sagrado
enquanto humano, do poeta enquanto coisa (“o amor mesmo quando profano
/ tem muito mais de sagrado”): filho de um deus com uma mortal,
Dionísio dança na recorrência da palavra “vinho” no livro, a
exemplo dos versos:
“aqui / a poesia pulsa / na veia
/ no vinho”; “por vinho tinto e poesia”; “ela tem sede de vinho / nas
madrugadas dos bares”; “o vinho do tempo na boca”; “em nossas bocas tinto –
vinho”; “beijo tua boca ainda suja / do vinho que sobrou”; “me consagro teu
amante / pelos vinhedos de Baco / no ápice sagrado / da su-real pornofonia”.
A embriaguez dos significantes e dos
significados é a que tanto forja imagens insólitas (como a de um “céu de
estanho” ou como em “ela mastiga meus ponteiros”) quanto
a que costura melodias bem trabalhadas entre vogais, consoantes (
“entre paredes pedras facas de dois gumes / nos parreirais depois da lua”), ratificando
a inteligência verbal (a logopeia) de Artur Gomes dobrada em
melopeia (música) e fanopeia (imagética). Visualidade provocada, a saber, não
só pelas imagens significadas pelos significantes, mas visualidade ou imagem do
próprio significante, o qual, dentro de si, dá à luz significâncias outras
(“EuGênio Andrade”, “Afro-dite, “BolivariAndo”, “eletriCidade”), pois Artur
Gomes – nesta “pornofonia” – é mestre na criação de neologismos (em tudo se vê
uma “carNavalha”).
Não apenas o corpo do homem, da mulher,
se sensualiza e se sexualiza sob a força cósmica de Eros. É o poema mesmo que,
em O poeta enquanto coisa, é corpo sensualizado, sexualizado,
da mesma maneira que a cidade, o mundo, os tempos e o Tempo são Eros, vez que a
palavra é pele e poro (duas palavras aliterantes e frequentes em Artur Gomes). Nessa
porosidade, o poeta se entende permeável a coisas e pessoas (a pessoas já
misturadas às coisas, a pessoas já coisas): “por entre poros entre
pelos / minhas unhas tuas costas”. Também por isso, por essa poesia de
tamanho contato, fricção, a relação com a língua se confirma erotizada e – vale
dizer – tanto a língua física quanto a verbal, o que equivale a dizer que
escrita e oralidade se reencontram no poeta: a sofisticação da escritura
literária não perde (pelo contrário, potencializa) a dimensão primigênia do
poeta como cantor, como ator “na divina língua de Baco”, a
qual se exalta mediante a recorrência também da palavra “boca” e
da palavra “coxa”: uma é a que beija, lambe, morde e degusta;
outra é a beijada, a lambida, a mordida, a degustada. Ambas em rima toante
também entoam ritmos e ritos profanos sagrados: o poema fala do teu corpo como
se o tocasse o reconhecesse em cada verso cada palavra que sai da boca como um
canto bíblico com louvor profano.
Nessa performance e
performatividade lingual-linguística, todo signo cisma um erotismo entre o significante
e o significado, sim, mas também entre página e palco, palco e praça, praça e
povo, a babel dos povos e a babel das palavras: daí, tantos trocadilhos
(troca-trocas, orgias, surubas...), como o da “flor do lótus” com
a “flor do lácio”, o das “coxas” com as “costas”, o
do “fauno” com a “flauta”, o da
“alvorada” com o “alvoroço”, o da “antítese” com
a “Antígona”. Eis a língua física, outrossim, a trocar com a
verbal, mas sendo ao mesmo temo pelo verbal trocado, e vice-versa.
Eis o poeta trocando com outros poetas ou sendo trocado por poetas outros, vestindo a roupa dos outros e tirando a sua roupa para ser outro: Federico Baudelaire, Gigi Mocidade, Bracutaia Silva, Federika Bezerra, Cristina Bezerra etc. O poeta, analista translógico da psique, troca com sua psicanalista. E o poeta se tenta analista de si mesmo, elevando o caos para a troca de seu nome Artur por timbres e assinaturas novos. Do mesmo modo, o nome dos poetas que existem, os que morreram e ainda não, os vivos hoje e sempre, vai se trocando, em rearranjos da memória (e do recriativo esquecimento). Artur Gomes troca poetas em seu corpo e, trocando com eles, entende que todos trocam entre si, a exemplo do diálogo poéticode Clarice com Baudelaire.
Mais ainda: o corpo do poeta troca com o corpo do poema e, consoante em “Poética”, a metalinguagem elabora um troca-troca de textos sob o mesmo título, pois o poema “Poética” se metamorfoseia em outros poemas: o tema “Poética” permanece, mas se trocando: o mesmo sendo diferente. A palavra “outro(s)” se sugere, enfim, ouro neste livro, e é nessa não indiferença ao outro, que o poético se faz ético e político. E nessa política da e pela diferença, a cidade do corpo se troca e vira o corpo da cidade.
Assim, o poeta é – quando e enquanto
coisa. No meio de tantas referências e reverências, borrões (d)e assinaturas
(como as de Mário de Andrade, Drummond, Torquato Neto, Rimbaud, Mallarmé,
Tanussi Cardoso, Tchello d’Barros, Jiddu Saldanha, Ronaldo Werneck, Reinaldo
Valinho Alvarez, Reinaldo Jardim, deuses e deusas gregas, orixás), o “anjo
torto” de Artur Gomes não sopra no livro Manoel de
Barros ou James Joyce, escritores também engenhosos e que se vale de muitos
ilogismos ou neologismos. Todavia, O poeta enquanto coisa não
deixa, na qualidade de título de livro, de repercutir o Retrato do artista
quando coisa (de Barros) e o Retrato do artista quando jovem (de Joyce). Do
mesmo modo, não havendo menção (ao menos, explícita e intencional), ao “Teatro
Oficina” de José Celso Martinez Corrêa, a dimensão orgiástica da arte
e a reunião – não menos sacro-promíscua – de mitos gregos e africanos, a
assimilação pela cultura ocidental de outras culturas, aparece em Artur
Gomes nesta, quiçá, Poesia Oficina. A relação gozosa e experimental
com que a palavra se faz poema e se teatraliza faz de seus livros um grande
laboratório da língua, do corpo e da cultura, com repercussões nitidamente
políticas. Se Pantanal é o corpo poético e o poema experimental, de aparente
falta de lógica, lembrando o discurso infantil, no Manoel de Barros do Retrato
do artista quando coisa, a urbe é o corpo prenhe de sexualidade e sensualidade
em Artur Gomes, nos supostos ilogismos do discurso adulto que se vê
fragmentado e devorado por Eros e Thanatos, e no qual a relação sujeito objeto
já não dá conta quando o humano se vê coisa (não mais agente ou paciente, voz
ativa ou passiva: talvez, as duas ao mesmo tempo).
Como no Pantanal de Barros, a linguagem
de Gomes é lamacenta, cheia de líquidos e delírios: a seiva se
expande e se intensifica com (ou se troca por) suor e sêmen. Lama, agora, é a
cama: o mangue ou o pantaneiro é a cama de Artur onde dormem,
acordam, sonham, gozam e ardem todos os corpos (humanos e não humanos) aqui já
citados e dispostos nos lençóis, colchas e fronhas da página. Por outro lado,
temos na trajetória literária de James Joyce, a intertextualidade com Ulisses
de Homero. Artur Gomes ouve o canto da sereia em
sua cama, livro, divã, e talvez do inconsciente escute a voz de um “artista
quando jovem”, vinda de Joyce. Nesta, a personagem protagonista
Stephen Dedalus, aquele que será adiante o anti-herói de Ulysses, diz à sua mãe
que não poderá seguir a vocação de padre. Ele descobriu uma nova e grandiosa
missão em sua vida: a de criar uma nova e poderosa mitologia para o povo
irlandês. O romance autobiográfico de Joyce narra a infância de Dedalus
(máscara de Joyce), personagem que vai aparecer novamente em Ulysses. A vida do
pequeno Dedalus é marcada pela religiosidade da mãe. Ela quer que o filho siga
a carreira eclesiástica. Vários padres fazem parte da vida de Dedalus e vão
moldando sua consciência. O momento de virada na vida da personagem principal
se dá no momento em que ele escuta um horrível sermão feito por um padre sobre
o inferno que o deixa muito impressionado. Dedalus passa a viver como um carola
seguindo à risca todos os jejuns e mandamentos da igreja católica. Nesse
momento, ele até se sente como um futuro padre. Com a sequência do romance,
vemos o jovem Dedalus passar de uma fase religiosa para uma de sensualidade.
Sente-se cada vez mais obcecado com a ideia da confissão. Ele então confessa a
um padre todos os pecados sensuais que pratica. Abandona definitivamente a
convocação de ser padre e passa a se interessar por ideias artísticas e
estéticas. Dedalus abandona a carreira de padre mas não a fé. Assim, Artur
Gomes se obstina pela ideia de confissão, mas de uma confissão
dionisíaca. Primeiro, fazendo suas Juras Secretas, suas
confidências sensuais, sexuais, eróticas, fulinaímicas. Em suma, suas
sagaranagens (há algo de Joyce em Guimarães Rosa, ou vice-versa; no Rosa que há
em Artur Gomes, no sagarana dos três). Agora, em O
poeta enquanto coisa, arriscando-se a abandonar todo credo
político-religioso paralisante, move-se – avesso ao dogmático – no sentido de
dançar o mito poético, o dionisíaco. Daí, uma Igreja Universal do Reino
de Zeus faça todo sentido na cosmogonia e teogonia de Artur
Gomes. Em primeiro lugar, como deboche diante de quaisquer
fundamentalismos. Em segundo lugar, como denúncia do que um Reino de Deus pode
roubar do político o vigor do poético, preferindo um louvor a Dionísio a um
Deus que não sabe dançar, que não sabe gozar, na liturgia de uma poesia que
roga por
um poema que desconcerte
entorte desconforte
arrombe a porta dos céus da tua
boca
arranhe os dentes da loba
arrebanhe os cordeiros no pasto
e lhes ensine a subverter as ordens do
pastor
assumo o risco não sou demo nem corisco
eu sou cantor
Iansã é quem me lava
Oxossi é quem me leva
Ogum é quem me manda
Oxum é quem me guarda
eu sou o que invoca
o que provoca e incorpora
desconcentra desconforta
desconstrói e desconcerta
eu sou o que interpreta
representa o que inventa e desafora
o Anjo Torto graças a Zeus a pedra
e ao Machado de Xangô
a Capitã do Mato Caipora
me xinga de poeta enganador
mal sabe ela que eu sou da reza
que o homem que se preza
nunca se escraviza com chicote de
feitor
*Igor Fagundes é
poeta, ensaísta, doutor em Poética e professor da Universidade Federal do Rio
de Janeiro. Autor, dentre outros, de pensamento dança (2018) e Poética na
incorporação (2016). Macumbança (2020)
Fulinaíma MultiProjetos
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