segunda-feira, 4 de outubro de 2021

A Poesia Liberada De Artur Gomes



Há uma passagem, em Auto do Frade, de João Cabral, que me chamou a atenção:

 

“- Fazem-no calar porque, certo

sua fala traz grande perigo.

- Dizem que ele é perigoso mesmo

falando em frutas e passarinhos.”

 

Vislumbro aí uma espécie de definição do alto poder transgressor da poesia, do poeta , da arte em geral: deixar fluir uma energia de protesto e indignação, crítica e iluminação da existência, qualquer que seja o pretexto ou o ponto de partida.

 

Por exemplo -: Suor & Cio, novo poemário de Artur Gomes. Na sua primeira parte (Tecidos Sobre A Terra) lemos um testemunho direto sobre as misérias e sofrimentos na região de Campos dos Goitacazes, interior fluminense. Não se canta amorosamente as lavouras de cana e grandes usinas, os aceiros e céus de anil. Ao contrário. Ouvimos uma fala que “traz grande perigo”, efetivamente ao denunciar – com aspereza e às vezes até com extremo rancor – a situação histórico-social, bruta e feroz, selvagem e primitiva, da exploração do homem no contexto do latifúndio e da monocultura.

 

“usina mói a cana

o caldo e o bagaço

usina mói o braço

a carne o osso”

 

Mas esta poesia dura, cortante e aguda, mantém igualmente a sua força de transgressão – continua revolucionária e perigosa – mesmo quando tematiza (principalmente em Tecidos Sobre A Pele, segunda parte do livro) as frutas, ou o prazer sexual, os seios, o carnaval, o mar, e os impulsos eróticos. Por detrás dos elementos bucólicos e parasidíacos (só nas aparências bem entendido), eis que explode o censurado o reprimido, o que não tem vergonha nem nunca terá:

 

“arando o vale das coxas

com o caule da minha espada

no pomar das tuas pernas

eu planto a língua molhada”.

 

Por isso, frequentemente os poemas se debruçam sobre o próprio ofício do poeta, e sobre o próprio sentido do fazer artístico, Ofício de Artista, experiência de poeta: presença do risco e da violação das normas injustas: carnavalizando, desbundando,a troup-sex, infernizando o céu e santificando a boca do inferno, denunciando o rufo dos chicotes, opondo-se aos donos da vida que controlam o saldo, o lucro e o tesão.

 

Os versos de Artur Gomes querem ser lidos, declamados, afixados em cartazes, desenhados em camisas. E vieram, para ficar nas memórias e bibliotecas da nossa gente, apesar do suor e do cio, e graças ao  suor e aocio:

 

“com um prazer de fera

e um punhal de amante”.

 

Uilcon Pereira

São Paulo, julho 1985


 

REVerso

 

Oswaldianamente

ainda não sei bandeira

nem levo o barco

ao rei da vela

 

: minha paixão

ainda é mangueira

desfilando na portela

 

SEIO DA TERRA

 

bem no centro do universo

te mando um beijo ó amada

enquanto arranco uma espada

do meu peito varonil

 

espanto todas estrelas

dos berços do eternamente

pra que acorde toda essa gente

deste vasto céu de anil

 

pois enquanto dorme o gigante

esplêndido sono profundo

não vê que do outro mundo

robôs te enrabam ó mãe gentil!

 

PARA Torquato Neto

                                        in memória

 

aqui estou na brasiléia tropicalha

em populácea militância

pornofágica

desbundando a marginalha

em poesia su-real

 

para esquecer que a circunstância

é um pouco trágica

e não dizer

que o meu brasil dançou geral


TRINCHEIRA

 

há uma gota de sangue

entre os meus olhos

                      e os teus

 

e muitas velas acesas

para salvar a nossa carne

e bocas cheias de dentes

mastigando a nossa morte

 

mas eles é que morrerão

meu amor : num grande susto

quando NUS virem

amando  nessa cama

de ferro e de pau duro

 

CORAÇÃO DE GALINHA

 

não sou tigresa

em tua cama

nem caviar em tua mesa

não sou mulher de fama

muito embora sempre tesa

 

não vim da boca do lixo

saí da pele do ovo

meu coração de galinha

virou orgasmo do povo

 

COITO

 

teu corpo é carne de manga

em meu pênis viril

enquanto sangra

quando beijo tua boca

                     enfurecido

rasgando por trás

          o teu vestido

 

COR DA PELE

 

árica sou: raíz e raça

orgia pagã na pele do poema

couro em chagas que me sangra

alma satã na carne de Ipanema

 

o negro na pele é só pirraça

de branco na cara do sistema

no fundo é amor que dou de graça

dou mais do que moça no cinema.

 

CARNE PROIBIDA

 

o preço atual

proíbes que me comas

mas pra ti estou de graça

pra ti não tenho preço

sou eu quem me ofereço

a ti: músculo & osso

leva-me à boca

e completa o teu almoço


OFÍCIO

 

ponho minha gema em tua blusa

para que pule no teu peito minha musa

toda tensão de ter tua pele em meu poema

 

meu ofício é de poeta

pra rimar poema e blusa

e ficar na tua pele

pelo tempo em que me usa

 

VOO SELVAGEM

 

com espada em riste

galopamos pradarias

e lutamos ferozmente

por dois segundos e meio

 

tua  fúria era louca

e agarrei-me em tuas crinas

para não cair na lama

 

mas o amor era tanto

e tanto era o prazer

quando fomos pra cama

não tinha mais o que fazer

 

ROSANA

 

nadar por sobre o peixe

dos teus olhos

e penetrar as profundezas

do teu útero

 

assim quando prepara

um outro nascimento

na escuridão

que a sua luz dê Flora

 

e com um membro teso

vazar a claridade

que em teus seios mora


Filipe

filho de poeta

faz da terra

água e pão

 

dilata músculos

do pai

clareia ventre

da mãe

 

retesa nervos

das mãos

 

encharca  vasos do corpo

transborda veias no chão

 

TERRA

 

antes que alguém morra

escrevo prevendo a morte

arriscando a vida

 

antes que seja tarde

e que a língua

da minha boca

não cubra mais tua ferida

 

II

entre aberto

em teus ofícios

é que o meu peito de poeta

sangra

ao corte das navalhas

minha veia mais aberta

é mais um rio que se espalha

 

III

terra, o que e dói

é ter-te devorada

por estranhos olhos

 

e deter impulsos

por fidelidade

 

IV

amada

de muitos sonhos

e pouco sexo

deposito a minha língua

no teu cio

e uma semente fértil

como um rio

 

URBANUS

 

debruçam no meu peito

sinais de sonhos, marcas

de fracassos

 

trafegam entre meus dentes

vinhoto nas gengivas

salivas no bagaço

 

entre os bueiros

do meu ventre

coração em carne viva

sangra do homem

seus pedaços

 

UTOPIA

 

ó  terra incestuosa

de prazer e gestos

não me prendo ao laço

dos teus comandantes

 

só me enterro a fundo

nos teus vagabundos

 

com um prazer de fera

e um punhal de amante

 

CAMPOS

 

levo-te nas entranhas

fuligem ferro pó

o ódio declarado das usinas

injetado nas veias

até os ovos

 

nos olhos:

a visão encarnecida

dos rufos dos chicotes

na carne e no suor

 

levo-te escrava

na certeza de nãos mais

sangrar em teus aceiros

ou enterrar-me até os ossos

em teus canaviais

 

MOAGEM

 

na orgia verde

de uma nova safra

o homem lavra

 

:

 

a esperança atenta

em lençóis de palha

 

ENGENHO


minha terra

é

de senzalas tantas

 

enterra em ti

milhões de outras novas

esperanças

 

soterra em teus grilhões

a voz que tenta -  avança

plantada em ti

como canavial que a foice corta

 

mas cravado em ti

me ponho à luta

mesmo sabendo – o vão

estreito em cada porta

 

Obs.: este poema está publicado na Antologia Carne Viva – primeira antologia de poesia erótica publicada no Brasil - organizada por Olga Savary, Edições Anima – Rio de Janeiro – 1985.

 

MOENDA

 

usina

mói a cana

        o caldo

        e o bagaço

 

usina

mói o braço

         carne

         o osso

 

usina

mói o sangue

        a fruta

        e o caroço

 

tritura suga e torce

dos pés até o pescoço

 

e do alto da casa grande

os donos do engenho

controlam o saldo e o lucro


USINA

 

rente a palha dos aceiros

o suor escorre à face

nas entranhas do nariz

 

e no solar da casa grande

é uma tarde de festas

regada a vinho de Paris

 

ACEIRO

 

o sol esconde a ira

e vem o parto

como fruto

 

pois é aqui que o homem sangra

para o lucro e o saldo bruto

 

CANAVIAL

 

minha terra é aqui

onde barro e carne

misturam-se num só corpo

 

onde suor e sangue

transformam-se

em um só espírito

 

onde matar a sede

é não ter o líquido

e matar a fome

é não comer o pão

 

onde o negror da pele

me transporta ao fogo

dos olhos de Maria

na primeira escravidão

 

SANTA CRUZ

 

como outra qualquer

vai moendo

sem adiantar gritar

que está doendo

 

porque o dono da usina

vai metendo

 

até que entre os dentes

da moenda

escorra o caldo da moagem

e só o dono da engrenagem

vai bebendo

 

CACOMANGA

 

ali nasci

minha infância

era só canaviais

 

ali mesmo aprendi

conhecer os donos de fazenda

e odiar os generais

 

NOVO HORIZONTE

 

um padre de saia preta

segue à risca

seus instintos

tendo o usineiro do lado

 

dá hóstia para os famintos

evento pros flagelados

 

BAIAFRO

 

essa áfrica nos meus olhos

navegar é minha sina

em toda febre todo fogo

que incendeia o continente

nos teus olhos de menina

 

eu sou um poeta

e nunca fui a china

mas vermelho é o meu sangue

desde que nasci

 

SEDE DOS MEUS OLHOS

 

carinhosamente

bebo os olhos teus

para matar a sede

e aflição dos meus

 

toda água desse rio

beberia eternamente

pois a minha sede

não morre de repente

 

é paixão

que não tem hora pra chegar

barco que vai embora

sem saber voltar

 

navegando mar inteiro

mares rios velas cais

pois a sede dos meus olhos

não se mata nunca mais

 

EQUILIBRISTA

 

sei que os loucos

sempre cantam nos hospícios

e eu, canto aqui

o meu poema carne & osso

comendo as sobras do tacho

raspando o fundo do poço

 

correndo o mesmo perigo

enquanto ginga, enquanto samba

minha palavra meu oficio

mais uma vez na corda bamba

 

FLORA

 

reluz em mim amor e flora

que tal riqueza em luz aflora

clara evidência total menino

com tal beleza voz e destino

 

e se não fores mansa

é que virás do mar

e virás da mãe flora lumiar

 

e virás das tarde e do amanhecer

e será tão linda que ainda vai saber

 

:

 

se andei por folhas  

foi pra te germinar

e deixar sementes

pra te alimentar

 

e se não fores flora

é o que vou fazer

deste grão de vida

que estás pra nascer

 

Artur Gomes

Suor & Cio

MVPB Edições

1985

 

Obs.: o poema Flora foi escrito antes do seu nascimento, Rosana, sua mãe, estava grávida de 6 meses, e me fez um desafio: -  se for menina eu escolho  o nome – se for menino você escolhe – como foi uma menina nossa primeira filha, foi batizada com o nome  Flora – em 1984 nasceu um menino nosso primeiro filho, que foi batizado com o nome Filipe.

 Obs.: todos os poemas deste livro foram compostos por mim na linotipo na Oficina de Artes Gráficas da Escola Técnica Federal de Campos e o livro impresso na Oficina Gráfica da Livraria Noblesse do meu saudoso e querido amigo Adilson Rangel.




 Artur Gomes

Da Nascente A Foz : Um Rio De Palavras

www.fulinaimargens.blogspot.com

 

Relendo algumas cartas  antigas metáforas de fogo de uma deusa incendiária para aquecer o clima nessa manhã de chuva primavera entrou desaguando nuvens de algodão outubro ou nada por sobre as teias que aranhas tecem entre cogumelos e amoras azuis vermelhas olhos de sangue que bebi naquela carta que recebi na madrugada


 

Studio Fulinaíma Produção Audiovisual

https://www.facebook.com/studiofulinaima



COURO CRU & CARNE VIVA

 Isso é um poema ou uma navalha?

 Difícil a pessoa passar pela vida sem cometer poesia. Aquela paixãozinha, aquele namorico desfeito, aquela dor de cotovelo deixam a gente desamparado. E como psicanalista está caro e nem sempre fica bem buscar o consolo da mamãe, a gente corre depressa pro colo quente da poesia, fazendo uns versinhos que não conseguem ultrapassar os estreitos limites do eu apaixonado, do eu angustiado, do eu ferido. Para a maioria das pessoas, poesia é coisa que dá e passa, principalmente na adolescência. Raros são aqueles que conseguem romper o exíguo círculo traçado em redor de si para entrar no terreno da verdadeira poesia. A quase totalidade das pessoas que faz “poesia” julga que ser poeta é fácil. Um pouquinho de sentimento, uma frase iniciada com letra maiúscula, outras frases colocadas abaixo da primeira e ponto final. Pronto. Fiz um poema.  Poeta que é poeta saque que fazer poesia não é mole mas consegue escrever  um poema até quando a inspiração está efervescente no intestino e “não quer sair”.  Preste só atenção em Drummond .

 

“Gastei uma hora pensando um verso

que a pena não quer escrever.

No entanto ele está cá dentro

inquieto, vivo

e não quer sair.

Mas a poesia deste momento

inunda minha vida inteira”.

 

Eis aí o Estado de Poesia, comoção lírica todos nós temos pelo menos uma vezinha na vida. Transformá-los em verdadeiros poemas é que são elas. Artur Gomes começou, como todo mundo, fazendo seus versinhos, mas desde o início, revelou um pendor incomum. A poesia para ele , era compromisso e não diletantismo ou fuga. Bem cedo, suas antenas sensíveis perceberam as misérias do mundo, particularmente as do em que ele vive, o terceiro. Sem armas brancas ou de fogo, impossibilitado de se transformar em guerrilheiro, ele fez da poesia, uma arma que cada dia afia mais.

 Terceiro mundista, brasileiro e malandro, ele não quis saber de espada, cimitarra, alfanjes, floretes, sabres e alabardes para travar suas lutas. Em vez, preferiu a navalha que corta frio e fino, sem que a gente perceba, até o sangue começar a escorrer. E sua marca não sai mais. Os poemas de Artur Gomes cortam feito navalha e deixam uma cicatriz indelével que nem plástica remove. Implacável e habilidoso no manejo da sua arma , ele arremete contra os fabricantes de injustiças. Sua poesia revela preocupações sociais, políticas e ecológicas, não poupando os mitos forjados pela história. Além de contestador, iconoclasta.

 Não se pense, porém que Artur Gomes vive mergulhado em profunda amargura. Ele sabe cantar também os prazeres do amor, do erotismo, a luxúria do ambiente tropical e o goso pela vida. Sua poesia é também resistência à desfiguração cultural do nosso país. Nem se pense também que a poesia em suas mãos, se reduz a um instrumento de protesto. Conquanto crítico e preocupado com o social, o político, e o ecológico, Artur Gomes demonstra também uma grande preocupação com questões técnicas. Artista, ele também é artesão. Trabalha seus poemas à exaustão, procura explorar as possiblidades da palavra e o suporte físico da página. Faz experiências no campo do concretismo, construindo poemas com palavras decompostas que só podem ser inteiramente compreendidas visualmente: a pá lavra;  re-par-tiu-se. Eis dois exemplos. Mas é fundamentalmente para o ouvido que se destinam os seus poemas. O espaço em que faz zunir e reluzir a sua navalha é sonoro e musical. O tempo passa e os poemas de Artur Gomes tornam-se cada vez mais musicais e ritmados.

 Outro traço que se acentua na evolução do seu trabalho: a concisão. A cada livro publicado, nos deparamos com um poeta sempre mais econômico. Na linha de um Oswald de Andrade e de José Paulo Paes, ele escreve poemas curtos, enxutos, incisivos, que ferem como o  diabo. Não rompe com a rima e com a métrica, mas não se deixa aprisionar por elas. Ambas estão presentes o tempo todo em seu trabalho sem que se possa garantir que não sejam ocasionais. A rima, por exemplo quando rompe, traz um efeito inusitado. Tanque rima com ianque, parque rima com dark. E aqui há outro aspecto digno de registro: Artur Gomes incorpora as novidades, mas nunca fica deslumbrado com elas. É moderno muitas vezes experimentalista, mas respeita a tradição. Não sei de suas leituras, mas deve tomar bênção aos clássicos. Não rompe com  a métrica, com a rima e com a estrutura do poema, mas não cai na poesia convencional. É agressivo, mas não perde nunca de vista o sentido maior da poesia. Isso não quer dizer, em contrapartida, faça arte pela arte, mas muito menos significa que se deixa envolver nas facilidades da poesia de protesto feita sob encomenda.

 O poeta está aí, inquieto, equilibrando-se na corda bamba. Pode começar a ler os seus poemas, leitor. Agora se você faz parte daquele grupo de pessoas que tiram partido da miséria e destruição, tome cuidado com Couro Cru & Carne Viva. Os  poemas navalha de Artur Gomes  certamente não terão piedade de você.

 

Aristides Arthur Soffiati

Campos, agosto de 1987




 A querida Pátria Amada  adormecida

agora acorda em mãos armadas

orientada por  genocida merdavalha

                  vamos cortar tua língua vil

               com  os meus fios de navalha

                esse brasil que come osso

          mora no abismo da mortalha

                     vamos degolar o teu pescoço

                     filho da puta vil canalha 



Artur Gomes 

fulinaimagens

www.fulinaimagens.blogspot.com

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