Há uma passagem, em Auto
do Frade, de João Cabral, que me chamou a atenção:
“- Fazem-no calar porque, certo
sua fala traz grande perigo.
- Dizem que ele é perigoso mesmo
falando em frutas e passarinhos.”
Vislumbro aí uma espécie de definição do alto poder
transgressor da poesia, do poeta , da arte em geral: deixar fluir uma energia
de protesto e indignação, crítica e iluminação da existência, qualquer que seja
o pretexto ou o ponto de partida.
Por exemplo -: Suor
& Cio, novo poemário de Artur
Gomes. Na sua primeira parte
(Tecidos Sobre A Terra) lemos um testemunho direto sobre as misérias e
sofrimentos na região de Campos dos Goitacazes, interior fluminense. Não se
canta amorosamente as lavouras de cana e grandes usinas, os aceiros e céus de
anil. Ao contrário. Ouvimos uma fala que “traz
grande perigo”, efetivamente ao denunciar – com aspereza e às vezes até com
extremo rancor – a situação histórico-social, bruta e feroz, selvagem e
primitiva, da exploração do homem no contexto do latifúndio e da monocultura.
“usina
mói a cana
o caldo e
o bagaço
usina mói
o braço
a carne o
osso”
Mas esta poesia dura, cortante e aguda, mantém igualmente a
sua força de transgressão – continua revolucionária e perigosa – mesmo quando
tematiza (principalmente em Tecidos
Sobre A Pele, segunda parte do livro) as frutas, ou o prazer sexual, os
seios, o carnaval, o mar, e os impulsos eróticos. Por detrás dos elementos
bucólicos e parasidíacos (só nas aparências bem entendido), eis que explode o
censurado o reprimido, o que não tem vergonha nem nunca terá:
“arando o
vale das coxas
com o
caule da minha espada
no pomar
das tuas pernas
eu planto
a língua molhada”.
Por isso, frequentemente os poemas se debruçam sobre o próprio
ofício do poeta, e sobre o próprio sentido do fazer artístico, Ofício de
Artista, experiência de poeta: presença do risco e da violação das normas
injustas: carnavalizando, desbundando,a
troup-sex, infernizando o céu e santificando a boca do inferno, denunciando
o rufo dos chicotes, opondo-se aos donos da vida que controlam o saldo, o lucro
e o tesão.
Os versos de Artur Gomes querem ser lidos, declamados,
afixados em cartazes, desenhados em camisas. E vieram, para ficar nas memórias
e bibliotecas da nossa gente, apesar do suor e do cio, e graças ao suor e aocio:
“com um
prazer de fera
e um
punhal de amante”.
Uilcon Pereira
São Paulo, julho 1985
REVerso
Oswaldianamente
ainda não sei bandeira
nem levo o barco
ao rei da vela
: minha paixão
ainda é mangueira
desfilando na portela
SEIO DA
TERRA
bem no centro do universo
te mando um beijo ó amada
enquanto arranco uma espada
do meu peito varonil
espanto todas estrelas
dos berços do eternamente
pra que acorde toda essa gente
deste vasto céu de anil
pois enquanto dorme o gigante
esplêndido sono profundo
não vê que do outro mundo
robôs te enrabam ó mãe gentil!
PARA
Torquato Neto
in memória
aqui estou na brasiléia tropicalha
em populácea militância
pornofágica
desbundando a marginalha
em poesia su-real
para esquecer que a circunstância
é um pouco trágica
e não dizer
que o meu brasil dançou geral
TRINCHEIRA
há uma gota de sangue
entre os meus olhos
e os teus
e muitas velas acesas
para salvar a nossa carne
e bocas cheias de dentes
mastigando a nossa morte
mas eles é que morrerão
meu amor : num grande susto
quando NUS virem
amando nessa cama
de ferro e de pau duro
CORAÇÃO
DE GALINHA
não sou tigresa
em tua cama
nem caviar em tua mesa
não sou mulher de fama
muito embora sempre tesa
não vim da boca do lixo
saí da pele do ovo
meu coração de galinha
virou orgasmo do povo
COITO
teu corpo é carne de manga
em meu pênis viril
enquanto sangra
quando beijo tua boca
enfurecido
rasgando por trás
o teu vestido
COR DA
PELE
árica sou: raíz e raça
orgia pagã na pele do poema
couro em chagas que me sangra
alma satã na carne de Ipanema
o negro na pele é só pirraça
de branco na cara do sistema
no fundo é amor que dou de graça
dou mais do que moça no cinema.
CARNE
PROIBIDA
o preço atual
proíbes que me comas
mas pra ti estou de graça
pra ti não tenho preço
sou eu quem me ofereço
a ti: músculo & osso
leva-me à boca
e completa o teu almoço
OFÍCIO
ponho minha gema em tua blusa
para que pule no teu peito minha musa
toda tensão de ter tua pele em meu poema
meu ofício é de poeta
pra rimar poema e blusa
e ficar na tua pele
pelo tempo em que me usa
VOO
SELVAGEM
com espada em riste
galopamos pradarias
e lutamos ferozmente
por dois segundos e meio
tua fúria era louca
e agarrei-me em tuas crinas
para não cair na lama
mas o amor era tanto
e tanto era o prazer
quando fomos pra cama
não tinha mais o que fazer
ROSANA
nadar por sobre o peixe
dos teus olhos
e penetrar as profundezas
do teu útero
assim quando prepara
um outro nascimento
na escuridão
que a sua luz dê Flora
e com um membro teso
vazar a claridade
que em teus seios mora
Filipe
filho de poeta
faz da terra
água e pão
dilata músculos
do pai
clareia ventre
da mãe
retesa nervos
das mãos
encharca vasos do corpo
transborda veias no chão
TERRA
antes que alguém morra
escrevo prevendo a morte
arriscando a vida
antes que seja tarde
e que a língua
da minha boca
não cubra mais tua ferida
II
entre aberto
em teus ofícios
é que o meu peito de poeta
sangra
ao corte das navalhas
minha veia mais aberta
é mais um rio que se espalha
III
terra, o que e dói
é ter-te devorada
por estranhos olhos
e deter impulsos
por fidelidade
IV
amada
de muitos sonhos
e pouco sexo
deposito a minha língua
no teu cio
e uma semente fértil
como um rio
URBANUS
debruçam no meu peito
sinais de sonhos, marcas
de fracassos
trafegam entre meus dentes
vinhoto nas gengivas
salivas no bagaço
entre os bueiros
do meu ventre
coração em carne viva
sangra do homem
seus pedaços
UTOPIA
ó terra incestuosa
de prazer e gestos
não me prendo ao laço
dos teus comandantes
só me enterro a fundo
nos teus vagabundos
com um prazer de fera
e um punhal de amante
CAMPOS
levo-te nas entranhas
fuligem ferro pó
o ódio declarado das usinas
injetado nas veias
até os ovos
nos olhos:
a visão encarnecida
dos rufos dos chicotes
na carne e no suor
levo-te escrava
na certeza de nãos mais
sangrar em teus aceiros
ou enterrar-me até os ossos
em teus canaviais
MOAGEM
na orgia verde
de uma nova safra
o homem lavra
:
a esperança atenta
em lençóis de palha
ENGENHO
minha terra
é
de senzalas tantas
enterra em ti
milhões de outras novas
esperanças
soterra em teus grilhões
a voz que tenta - avança
plantada em ti
como canavial que a foice corta
mas cravado em ti
me ponho à luta
mesmo sabendo – o vão
estreito em cada porta
Obs.: este poema está publicado na Antologia Carne Viva – primeira antologia de
poesia erótica publicada no Brasil - organizada por Olga Savary, Edições Anima –
Rio de Janeiro – 1985.
MOENDA
usina
mói a cana
o caldo
e o bagaço
usina
mói o braço
carne
o osso
usina
mói o sangue
a fruta
e o caroço
tritura suga e torce
dos pés até o pescoço
e do alto da casa grande
os donos do engenho
controlam o saldo e o lucro
USINA
rente a palha dos aceiros
o suor escorre à face
nas entranhas do nariz
e no solar da casa grande
é uma tarde de festas
regada a vinho de Paris
ACEIRO
o sol esconde a ira
e vem o parto
como fruto
pois é aqui que o homem sangra
para o lucro e o saldo bruto
CANAVIAL
minha terra é aqui
onde barro e carne
misturam-se num só corpo
onde suor e sangue
transformam-se
em um só espírito
onde matar a sede
é não ter o líquido
e matar a fome
é não comer o pão
onde o negror da pele
me transporta ao fogo
dos olhos de Maria
na primeira escravidão
SANTA
CRUZ
como outra qualquer
vai moendo
sem adiantar gritar
que está doendo
porque o dono da usina
vai metendo
até que entre os dentes
da moenda
escorra o caldo da moagem
e só o dono da engrenagem
vai bebendo
CACOMANGA
ali nasci
minha infância
era só canaviais
ali mesmo aprendi
conhecer os donos de fazenda
e odiar os generais
NOVO
HORIZONTE
um padre de saia preta
segue à risca
seus instintos
tendo o usineiro do lado
dá hóstia para os famintos
evento pros flagelados
BAIAFRO
essa áfrica nos meus olhos
navegar é minha sina
em toda febre todo fogo
que incendeia o continente
nos teus olhos de menina
eu sou um poeta
e nunca fui a china
mas vermelho é o meu sangue
desde que nasci
SEDE DOS
MEUS OLHOS
carinhosamente
bebo os olhos teus
para matar a sede
e aflição dos meus
toda água desse rio
beberia eternamente
pois a minha sede
não morre de repente
é paixão
que não tem hora pra chegar
barco que vai embora
sem saber voltar
navegando mar inteiro
mares rios velas cais
pois a sede dos meus olhos
não se mata nunca mais
EQUILIBRISTA
sei que os loucos
sempre cantam nos hospícios
e eu, canto aqui
o meu poema carne & osso
comendo as sobras do tacho
raspando o fundo do poço
correndo o mesmo perigo
enquanto ginga, enquanto samba
minha palavra meu oficio
mais uma vez na corda bamba
FLORA
reluz em mim amor e flora
que tal riqueza em luz aflora
clara evidência total menino
com tal beleza voz e destino
e se não fores mansa
é que virás do mar
e virás da mãe flora lumiar
e virás das tarde e do amanhecer
e será tão linda que ainda vai saber
:
se andei por folhas
foi pra te germinar
e deixar sementes
pra te alimentar
e se não fores flora
é o que vou fazer
deste grão de vida
que estás pra nascer
Artur Gomes
Suor & Cio
MVPB Edições
1985
Obs.: o poema Flora
foi escrito antes do seu nascimento, Rosana, sua mãe, estava grávida de 6
meses, e me fez um desafio: - se for
menina eu escolho o nome – se for menino
você escolhe – como foi uma menina nossa primeira filha, foi batizada com o
nome Flora – em 1984 nasceu um menino nosso
primeiro filho, que foi batizado com o nome Filipe.
Obs.: todos os poemas deste livro foram compostos por mim na linotipo na Oficina de Artes Gráficas da Escola Técnica Federal de Campos e o livro impresso na Oficina Gráfica da Livraria Noblesse do meu saudoso e querido amigo Adilson Rangel.
Artur Gomes
Da Nascente A Foz : Um Rio De Palavras
www.fulinaimargens.blogspot.com
Relendo algumas cartas antigas metáforas de fogo de uma deusa incendiária para aquecer o clima nessa manhã de chuva primavera entrou desaguando nuvens de algodão outubro ou nada por sobre as teias que aranhas tecem entre cogumelos e amoras azuis vermelhas olhos de sangue que bebi naquela carta que recebi na madrugada
Studio Fulinaíma Produção Audiovisual
https://www.facebook.com/studiofulinaima
COURO CRU
& CARNE VIVA
Isso é um poema ou uma navalha?
Difícil a pessoa passar pela vida sem cometer poesia. Aquela paixãozinha, aquele namorico desfeito, aquela dor de cotovelo deixam a gente desamparado. E como psicanalista está caro e nem sempre fica bem buscar o consolo da mamãe, a gente corre depressa pro colo quente da poesia, fazendo uns versinhos que não conseguem ultrapassar os estreitos limites do eu apaixonado, do eu angustiado, do eu ferido. Para a maioria das pessoas, poesia é coisa que dá e passa, principalmente na adolescência. Raros são aqueles que conseguem romper o exíguo círculo traçado em redor de si para entrar no terreno da verdadeira poesia. A quase totalidade das pessoas que faz “poesia” julga que ser poeta é fácil. Um pouquinho de sentimento, uma frase iniciada com letra maiúscula, outras frases colocadas abaixo da primeira e ponto final. Pronto. Fiz um poema. Poeta que é poeta saque que fazer poesia não é mole mas consegue escrever um poema até quando a inspiração está efervescente no intestino e “não quer sair”. Preste só atenção em Drummond .
“Gastei uma hora pensando um verso
que a pena não quer escrever.
No entanto ele está cá dentro
inquieto, vivo
e não quer sair.
Mas a poesia deste momento
inunda minha vida inteira”.
Eis aí o Estado de Poesia, comoção lírica todos nós temos pelo
menos uma vezinha na vida. Transformá-los em verdadeiros poemas é que são elas.
Artur Gomes começou, como todo mundo,
fazendo seus versinhos, mas desde o início, revelou um pendor incomum. A poesia
para ele , era compromisso e não diletantismo ou fuga. Bem cedo, suas antenas
sensíveis perceberam as misérias do mundo, particularmente as do em que ele
vive, o terceiro. Sem armas brancas ou de fogo, impossibilitado de se
transformar em guerrilheiro, ele fez da poesia, uma arma que cada dia afia
mais.
Terceiro mundista, brasileiro e malandro, ele não quis saber de espada, cimitarra, alfanjes, floretes, sabres e alabardes para travar suas lutas. Em vez, preferiu a navalha que corta frio e fino, sem que a gente perceba, até o sangue começar a escorrer. E sua marca não sai mais. Os poemas de Artur Gomes cortam feito navalha e deixam uma cicatriz indelével que nem plástica remove. Implacável e habilidoso no manejo da sua arma , ele arremete contra os fabricantes de injustiças. Sua poesia revela preocupações sociais, políticas e ecológicas, não poupando os mitos forjados pela história. Além de contestador, iconoclasta.
Não se pense, porém que Artur Gomes vive mergulhado em profunda amargura. Ele sabe cantar também os prazeres do amor, do erotismo, a luxúria do ambiente tropical e o goso pela vida. Sua poesia é também resistência à desfiguração cultural do nosso país. Nem se pense também que a poesia em suas mãos, se reduz a um instrumento de protesto. Conquanto crítico e preocupado com o social, o político, e o ecológico, Artur Gomes demonstra também uma grande preocupação com questões técnicas. Artista, ele também é artesão. Trabalha seus poemas à exaustão, procura explorar as possiblidades da palavra e o suporte físico da página. Faz experiências no campo do concretismo, construindo poemas com palavras decompostas que só podem ser inteiramente compreendidas visualmente: a pá lavra; re-par-tiu-se. Eis dois exemplos. Mas é fundamentalmente para o ouvido que se destinam os seus poemas. O espaço em que faz zunir e reluzir a sua navalha é sonoro e musical. O tempo passa e os poemas de Artur Gomes tornam-se cada vez mais musicais e ritmados.
Outro traço que se acentua na evolução do seu trabalho: a concisão. A cada livro publicado, nos deparamos com um poeta sempre mais econômico. Na linha de um Oswald de Andrade e de José Paulo Paes, ele escreve poemas curtos, enxutos, incisivos, que ferem como o diabo. Não rompe com a rima e com a métrica, mas não se deixa aprisionar por elas. Ambas estão presentes o tempo todo em seu trabalho sem que se possa garantir que não sejam ocasionais. A rima, por exemplo quando rompe, traz um efeito inusitado. Tanque rima com ianque, parque rima com dark. E aqui há outro aspecto digno de registro: Artur Gomes incorpora as novidades, mas nunca fica deslumbrado com elas. É moderno muitas vezes experimentalista, mas respeita a tradição. Não sei de suas leituras, mas deve tomar bênção aos clássicos. Não rompe com a métrica, com a rima e com a estrutura do poema, mas não cai na poesia convencional. É agressivo, mas não perde nunca de vista o sentido maior da poesia. Isso não quer dizer, em contrapartida, faça arte pela arte, mas muito menos significa que se deixa envolver nas facilidades da poesia de protesto feita sob encomenda.
O poeta está aí, inquieto, equilibrando-se na corda bamba. Pode começar a ler os seus poemas, leitor. Agora se você faz parte daquele grupo de pessoas que tiram partido da miséria e destruição, tome cuidado com Couro Cru & Carne Viva. Os poemas navalha de Artur Gomes certamente não terão piedade de você.
Aristides
Arthur Soffiati
Campos, agosto de 1987
A querida Pátria Amada adormecida
agora acorda em mãos armadas
orientada por genocida
merdavalha
vamos
cortar tua língua vil
com os meus fios de navalha
esse
brasil que come osso
mora no abismo da mortalha
vamos degolar o teu pescoço
filho da puta vil canalha
Artur Gomes
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