terça-feira, 22 de março de 2022

o ator e o performer




Jerzy Grotowski - e o ator performer.
O Ator para Grotowski
Jerzy Grotowski


Texto:
Cristina Tolentino

Quando Grotowski entrou em contato com o mundo do teatro, compreendeu que o ator que buscava, o ator que considerava absolutamente necessário para realizar seu projeto, teria que romper, em primeiro lugar, com este círculo perverso ensaios-espetáculos. Este círculo, segundo ele, encerra o ator desde o começo de sua carreira em uma rotina sufocante que chamam de "profissão" e apaga suas aspirações criativas.

Portanto, o primeiro objetivo de Grotowski ao criar o Teatro das 13 Filas foi diminuir o ritmo dos preparativos para o espetáculo; reservar cada vez mais tempo para os ensaios; deixar mais tempo livre para o treinamento. Grotowski buscou desde o início do seu trabalho um espaço pedagógico, uma escola, um laboratório, um lugar em que o ator pudesse adquirir, conservar e aperfeiçoar os elementos ético-técnicos indispensáveis para sua atividade criativa.

Dentro dessa perspectiva, os EXERCÍCIOS desempenharam um papel fundamental no Teatro Laboratório. Por meio deles, diz Grotowski: "o ator se capacita para a artificialidade e a elaboração formal, aprendendo, antes de mais nada, a superar os limites do cotidiano e o naturalismo psicológico, para conseguir, depois, a expressividade física total - a única que pode estar em condições de restituir o ator total.

Nos exercícios e no treinamento, Grotowski colocou toda a atenção no corpo e secundariamente, na palavra. Palavra esta que nasce do corpo e que, portanto, não poderá ser usada corretamente sem uma preparação física adequada. "Será um clichê estéril, naturalista, declamatório."

Os exercícios são relacionados com as mais diferentes técnicas do corpo, como: Hatha-yoga, pantomina, acrobacia, dança, diferentes esportes como esgrima e métodos de origem estritamente teatrais.

Exercícios Físicos - sobretudo ginástico-acrobáticos.
Exercícios Plásticos - divididos em exercícios mentais (tomados de Jacques Dalcroze) e exercícios de composição, provenientes do teatro oriental (elaboração de novos ideogramas gestuais).
Exercícios de máscara facial (intuídos em primeiro lugar, por Delsarte).
Exercícios vocais relacionados com a respiração.

Jerzy Grotowski, exercícios Jerzy Grotowski, exercícios

A partir de 1963, esses exercícios sofrem uma mudança de percepção e passam a ser um pretexto para a elaboração de uma forma pessoal de treinamento do ator: "um meio para localizar e remover as resistências e obstáculos que o bloqueiam em sua missão criativa e o impedem de manifestar seus impulsos vivos."

Os exercícios passam de uma concepção positiva da técnica do ator para uma concepção negativa: "este é o caminho que entendo por expressão - caminho negativo - um processo de eliminação." Segundo Grotowski, a utilização positiva da técnica no teatro, traz o risco do perfeccionismo exterior e do virtuosismo puro - uma expressão corporal entendida só em seu aspecto exterior e muscular e do próprio narcisismo. Se os atores tradicionais, em sua maioria, eram uma cabeça (ou uma voz) sem corpo, os atores do Teatro Laboratório corriam o perigo de converterem-se num corpo sem cabeça, perpetuando essa separação secular sobre a qual se edificou a civilização ocidental.

A partir dessas reflexões, Grotowski busca uma técnica que recomponha o ator - o homem na sua totalidade: mente, corpo, gesto, palavra, espírito, matéria, interno, externo.

Neste período, Grotowski destaca duas indicações para os exercícios:

os exercícios devem ser individuais e motivados por associações, imagens precisas - reais ou fantásticas - ou seja, tenham conteúdo.
a reação física deve iniciar-se sempre dentro do corpo. O gesto visível só deve ser a conclusão desse processo.
É o corpo-memória, o corpo-vida, imagens que projetam seu reflexo para mais além do teatro e da representação. Assim acontece quando "o homem não quer esconder mais nada: nem sobre a pele, nem a pele, nem embaixo da pele."

Sobre este trabalho escreve o crítico Joseph Kerala, após assistir a interpretação de Ryzard Cieslak em "O Príncipe Constante" em 1965: "na interpretação do ator os elementos fundamentais da teoria de Grotowski se manifestam de modo tão preciso e tangível que oferece, não só uma demonstração de seu método, mas também os frutos estupendos que este método dá.



em cena


sobre a mesa um chocolate meio amargo e uma garrafa de café. Clarice retocava a maquiagem enquanto pensava o chocolate em sua boca, para ela comer chocolate é o mesmo que comer livros, mesmo que Federico a imagine mulher doida, mas para ela tanto faz, dá no mesmo, e pare ele isso é muito vago. a garrafa de café permanecia sobre a mesa sem que ninguém a tocasse, todos os sentidos de Clarice estão voltados para o livro e o chocolate.



Poética 42

 

Era uma menina vestida de outubro
atravessando a rua
com um girassol no seu vestido

suas mãos beijavam o vento
como fossem lábios
de um beija-flor

meus olhos mergulhados
na paisagem
entre os olhos da menina
e o espelho do retrovisor

foto.grafei naquela tarde
a cor do seu vestido
e o girassol daquele dia
para me habitarem
seja lá por onde eu for


dia d


, furai

a pele das partículas dos poemas
viemos das gerações neoabstratas
assistindo a belos filmes de Godart
inertes em películas de Truffaut
bebendo apocalipses de Fellini
em tropicâncer genocidas de terror

, sangrai a tela realista dos cinemas
na pele experimental do caos urbano,
tragai
Dali pele entre/ossos
Glauber rugindo enTridentes
na língua do veneno o gozo das serpentes
nos frascos insensíveis de isopor

,
caímos no poder do vil orgânico
entramos no curral dos artefatos
na porta de entrada os artifícios
na jaula sem saída os mesmos pratos






Pornofônico confesso

se este poema inocente
primitivo natural indecente
em teu pulsar navegante
entrar por tua boca entre dentes
espero que não se zangue
se misturar o meu sangue
em teu pensar quando antropo
por todas bocas do corpo
em letal porno grafia
na sagração da mulher

me diga deusa da orgia
se também tu não me quer
quando em ti lateja/devora
palavra por palavra
a fome por dentro e fora
em pornofonia sonora

me diga Lady Senhora
nestes teus setenta anos
se nunca gozou pelos ânus
me diga Bia de Dora
num plano lítero/estético
qual humano ou cibernético
que te masturba ou te deflora

Artur Gomes
o poeta enquanto coisa

www.fulinaimargem.blogspot.com





Entrevista com a Psicoterapeuta Isadora Chiminazzo Predebon – continuação

Artur - O Que é Psicofobia?
E até onde ela pode nos levar?

Isadora - A Psicofobia se trata de um preconceito em relação às pessoas que têm transtornos mentais ou deficiências mentais dos mais diversos tipos. Antigamente, relacionava-se com pessoas "endemoniadas", "demônio no corpo", "bruxaria" e entre outras questões. Com o surgimento da psiquiatria e da psicologia e seus estudos e contribuições para a compreensão e tratamento das mesmas, acabou diminuindo um pouco a psicofobia por parte da população.

Mas ainda, no senso comum, pouco se sabe sobre o movimento da Reforma Psiquiatrica, por exemplo, que trouxe com ela novos modos de tratar transtornos mentais (principalmente, os mais graves) e um questionamento ao modelo antigo de "tratamento", quando relacionado aos manicômios ou hospitais psiquiátricos.

A psicofobia pode tanto levar para uma pessoa não buscar tratamento por medo de ser "taxada de louca", como também, inferiorizar pessoas que têm transtornos mentais e que precisam de um tratamento adequado (psiquiátrico + psicoterapia; psicoterapia; tratamento sistematizado, etc). De qualquer forma, a psicofobia atrapalha a busca por tratamento, como também acaba, por falta de informação, negligenciando e inferiorizando ao tratar como "frescura".
A Associação Brasileira de Psiquiatria tem um forte campanha de iniciativa para combater o preconceito à Psicofobia.

Em resumo, a Psicofobia além de dificultar a busca por tratamento, também pode contribuir para taxas de suicídio e intensificação de alguns sintomas





 Artur Gomes,

um poeta campista no palco da memória

por Deneval Siqueira

Artur Gomes é poeta de longa ancestralidade e forte techné, e sempre nos brinda com sua poíesis de tom ritmado na pesada musicalidade de herança oral. Campista goitacá, em breve, lançará, O Poeta enquanto Coisa, cuja Psicótica – 67 transcrevo abaixo.


Psicótica – 67

com os dentes cravados na memória

não frequento academias
físicas – e muito menos literárias
minha palavra avária
está à beira do precipício
nem sei porque não continuei
internado no hospício
onde choques elétricos aconteciam as tantas
no manicômio Henrique Roxo
na cidade de Campos dos Goytacazes
onde a medicina psiquiátrica
era exercida por capatazes de médicos açougueiros
e um Capixaba de nome Vespasiano
não resistiu ao surto
explodiu a cabeça contra a parede
e nenhum jornal da cidade
noticiou o suicídio
que eu trago na lembrança
com os dentes cravados na memória

Artur Gomes

O Poeta Enquanto Coisa

Tendo como marca registrada da sua obra o palimpsesto e o intratexto, onde se confundem a voz do eu-lírico, refundado na memória dos jornais, do noticiário policialesco, na jornada absurda da crueldade a la Antonin Artaud e salpicada de telurismo, sua poética vem sobressaltar os menos avisados.

Retomando alguns traços de Jorge de Lima e Ana Cristina César, não fica no passado mnemônico, pois seu traço lírico principal é do poeta memorialista cultural e telúrico, de perfil universalista, pois joga com o absurdo e com a persona teatral, desfazendo-se da loucura qualquer que seja, pois trabalha a arte do poema com desvario lírico musical a la Bethoven, a la Wagner, compondo uma ópera do absurdo nas memórias subjacentes.

O percurso de Artur Gomes é muito interessante e enriquece a historiografia dos poetas brasileiros contemporâneos, assim como Adriano Moura, Flávia D’Ângelo, entre outros não publicados ainda.

Vale a conferida. Estamos todos aguardando o livro de poemas O Poeta Enquanto Coisa (2019) , título que sugere a materialização da memória no poema, de grau cabralino, e que segundo o autor-poeta “o instante que nos obriga a ser memorialistas”. Certo. A memória não perdoa, ela finca a faca no peito do leitor, sem sangue, mas cheia de feridas.

Deneval Siqueira
Pós-Doutor e professor Titular de Teoria e História Literária
Centro de Ciências Humanas e Naturais
Programa de Pós-graduação em Letras - Doutorado e Mestrado em Estudos
Literários da UFES



ancestral


há muito tempo não recebo cartas de ninguém
mas não rezo padre nossos
simplesmente para dizer amém
já fui católico rezei terços ladainhas
acompanhei a procissão dos afogados
na Tapera para soletrar a palavra Cacomanga
e entender que o barro da cerâmica
trago grudado na minha íris retina
meu batismo de fogo foi numa Santa Cecília
entre víboras e serpentes
mordi a hóstia do padre
sua saia preta me levou ao pânico
de sonhar com juízes e hoje saber o que são
minha África são os olhos negros
de Madame Satã
na língua tenho uma sede felina
na carne essa fome pagã
sou um homem comum
filho de Ogum com Iansã


Anjo Torto

eu sou o que invoca
o que provoca
e incorpora
desconcentra
desconforta
desconstrói
e desconcerta

eu sou o que interpreta
representa
o que inventa
e desafora

o Anjo Torto
graças a Zeus
a pedra e ao Machado de Xangô

a Capitã do Mato Caipora
me xinga de poeta enganador
mal sabe ela
que eu sou da reza
que o homem que se preza
nunca se escraviza
com chicote de feitor


Artur Gomes
O Poeta Enquanto Coisa

Editora Penalux - 2020

www.secretasjuras.blogspot.com



Poemas Para Todas As Horas
http://bit.ly/PoemasParaTodasAsHoras


Poucos poetas contemporâneos expressam tão bem as principais bandeiras do Modernismo de 22 quanto esse vate pós-moderno. Sua poesia é política, antropofágica, nonsense, musical, polifônica e sobretudo intertextual, além de dotada de uma brasilidade corrosiva, avessa ao nacionalismo acrítico que se tem espraiado pela ex-terra de “Santa cruz”.

Adriano Moura – fragmento do texto sobre O Homem Com A Flor Na Boca – livro inédito com previsão de lançamento em 2022



Disponível para compra no site www.editorapenalux.com.br
SINOPSE: Depois das excitadas e excitantes Juras secretas, de 2018, o poeta e artista multimídia Artur Gomes volta a tornar pública sua jura de amor e fidelidade ao arcaico deus Dionísio em “O poeta enquanto coisa” [...] Comparece ao ethos deste livro a mesma embriaguez fulinaímica de sempre: a que toma, mediante o delírio atento frente aos passos obtusos do ser e estar das gentes, cada palavra como taça, vinho tinto e uma tinta capaz de, em contrapartida, rogar lúcida a passagem dilacerada do humano pelas páginas turvas do mundo. [...] Seus versos são rascunhos, rasuras e ranhuras a passar a limpo os nexos e os nervos de sua fatura formal e estilística, deixando sobre a página tanto um rastro de unha quanto o esmalte dos escritos e vozes que em sua alma avultam e nos dedos instauram cutículas. [...] Não apenas o corpo do homem, da mulher, se sensualiza e se sexualiza sob a força cósmica de Eros. [...] Nessa porosidade, o poeta se entende permeável a coisas e pessoas (a pessoas já misturadas às coisas, a pessoas já coisas) [...] Também por isso, por essa poesia de tamanho contato, fricção, a relação com a língua se confirma erotizada e – vale dizer – tanto a língua física quanto a verbal, o que equivale a dizer que escrita e oralidade se reencontram no poeta: a sofisticação da escritura literária não perde (pelo contrário, potencializa) a dimensão primigênia do poeta como cantor, como ator “na divina língua de Baco”. [...] Artur Gomes ouve o canto da sereia em sua cama, livro, divã, [...] se obstina pela ideia de confissão, mas de uma confissão dionisíaca [...] preferindo um louvor a Dionísio a um Deus que não sabe dançar, que não sabe gozar, na liturgia de uma poesia que roga. Trechos do prefácio de Igor Fagundes


Prezado escritor Artur Gomes,


A Diretoria da União Brasileira de Escritores do Rio de Janeiro envia, em anexo a este, o certificado de premiação e convida para a reunião virtual que será realizada no dia 23 de Outubro às 16 h.

Atenciosamente,
Euridice Hespanhol

Diretoria social da UBE/RJ



 
linguagem


o que vai
de um lado da ponte
a outra
é o que sai da boca

o que entra é a língua
a que entorta
beija sem pedir licença
chupa morde goza
na entrada e na saída

sem ter adeus na despedida

Artur Gomes Fulinaíma

do livro inédito - FULINAIMAGEM




Da Carne DA Palavra 

 por Tanussi Cardoso 


Ator, produtor, videomaker e agitador cultural, o poeta Artur Gomes tem assinatura própria. SagaraNAgens Fulinaímicas, seu mais novo livro, repleto de citações a partir do título, é a prova generosa do que afirmo: um inventário da pulsação de sua escritura, uma das mais iluminadas, entre os remanescentes da geração que se inicia nos anos 60-70.

 Mesmo mirando certa desconstrução narrativa, o autor semeia as raízes culturais, germinadas naquelas décadas, que desabrocharam como furacão em nossa arte, principalmente vindas da canção popular, com sua palavra cantada, da poesia marginal, da Tropicália, do Concretismo, do poema-postal, da poesia visual, do cinema e, mesmo, dos quadrinhos.

 Todo esse caldeirão cultural, todas essas referências e linguagens eram (são) muito próximas: Caetano, Gil, Torquato, Glauber, Leminski, Waly, Gullar, Hilda Hilst… E é desse quadro geracional (e bem lá atrás, Drummond, Murilo Mendes, Bandeira, Cabral, Quintana, Mário, Oswald e Guimarães Rosa – e principalmente -, a trilogia dos malditos: Rimbaud, Baudelaire e Mallarmé, além dos ecos do mestre beat, Allen Ginsberg), é desse manancial criativo que o poeta consegue desarmar o que nele se encontra envolto, de forma atávica, e reafirmar seus próprios tempo e potência, com o refinamento de sua fala.

 Ao unir todo artefato onde exista possibilidade de poesia, Artur Gomes habita o lugar entre a palavra e a imagem, ao experimentar os sentidos que lhe chegam, sugando os afluentes existentes nas estruturas tradicionais de nossas artes, e reescrevendo-os a seu bel-prazer, num mix de nostalgia e futuro.

 “visto uma vaca triste como a tua cara:

estrela cão gatilho morro
a poesia é o salto de uma vara”

 De forma particular, o autor parece nos indicar algo que se confunde com transgressão, mas, ao mesmo tempo, mantém a linha tênue da poesia clássica, ao flertar com um romantismo de tintas fortes, e tocando, igualmente, o surrealismo, com uma violência verbal, que cheira à flor e à brutalidade. Cada poema possui sua própria respiração, pausa e pontuação emocionais. Quem não gostar de sangrar e ir fundo no mais recôndito dos prazeres é melhor não prosseguir na leitura, mas quem tiver coragem de encarar a vida de frente e se deliciar com versos saborosos e extremamente imagéticos, entre no mundo do poeta, de imediato, e sentirá a alegria de descobrir uma poesia a que não se pode ficar indiferente.

 “a língua escava entre os dentes

a palavra nova
fulinaimânica/sagarínica
algumas vezes muito prosa
outras vezes muito cínica”

 Ainda que não pretenda novas experiências formais, o autor consegue alcançar perspectivas ousadas e radicais, em vários enquadramentos linguísticos, sempre disponíveis para o espanto, já que quando falamos de poesia, tocamos em lados inexatos, onde qualquer inversão de objetividade, e da própria realidade, é sempre bem-vinda. Sua poesia tem muito da desordem, da inobservância de regras, do não sentido, e apresenta um discurso contrário a certo pensamento lógico, fazendo surgir nas páginas do livro, algumas impurezas saudáveis.

 “te procurei na Ipiranga

não te encontrei na Tiradentes
nas tuas tralhas tuas trilhas
nos trilhos tortos do Brás
fotografei os destroços
na íris do satanás”

 

SagaraNAgens Fulinaímicas nos apresenta uma peça de tom quase operístico e, paradoxalmente, para um só personagem: o Amor. E o desenho poético dessa montagem pressupõe uma grande carga lírica, alegórica e, tantas vezes, dramática, ao retratar o som universal da Paixão, perseguindo a imagem ideal dos limites do desejo. Seus versos são movidos por esse sentimento dionisíaco, e por tudo que é excesso, por tudo que é muito, como na música de Caetano.

 

“te amo
e amor não tem nome
pele ou sobrenome
não adianta chamar
que ele não vem quando se quer
porque tem seus próprios códigos
e segredos”

 

E indaga e responde:

 “até quando esperaria?

até que alguém percebesse
que mesmo matando o amor
o amor não morreria”

 Em seu texto, há uma espécie de dança frenética, onde interagem os quatro elementos do Universo – Terra, Água, Fogo e Ar – numa feitiçaria cósmica em contínuo transe mediúnico. Poesia que é seta certeira no coração dos caretas e dos conformados, ao apontar para as possíveis descobertas inesperadas da linguagem, inebriada pela vida, pelo cantar amoroso, pelo encontro dos corpos.

 “e para espanto dos decentes

te levo ao ato consagrado
se te despir for só pecado
é só pecar que me interessa”

 Dono de uma sonoridade vocabular repleta de aliterações e assonâncias, que remetem à intensa oralidade e à pulsão musical, refletindo no leitor o desejo de ler os poemas em voz alta, o poeta brinca com as palavras, cria neologismos, utiliza-se de colagens originais, e soma ao seu vasto arsenal de recursos, o uso das antíteses, dos paradoxos, das metonímias, das metáforas, dos pleonasmos e, principalmente, das hipérboles, através de poemas de impactante beleza. Esse jogo vocabular, que a tudo harmoniza, transforma a dinâmica do verso, dá agilidade, tensão e ritmo envolventes a uma poesia elétrica e eletrizante. Um bloco de tesão carnavalizante e tropical – atrás de Artur Gomes só não vai quem não o leu.

 “quero dizer que ainda é cedo

ainda tenho um samba/enredo
tudo em nós é carnaval”

 De forma lúdica e irônica, reconstrói, ou reverte, as intenções de Guimarães Rosa, quando Sagarana se mistura à ideia de paisagens e ao sentido de sacanagens; e às de Mario de Andrade – onde Macunaíma reparte seu teor catártico em poéticas folias, ou em fulias de imagens, ou seja, em fulinaímicas poesias, banhadas de caos e humor.

 “é língua suja e grossa

visceral ilesa
pra lamber tudo que possa
vomitar na mesa
e me livrar da míngua
desta língua portuguesa”

 Ao seguir de perto o conceito metafórico do processo crítico e cultural da Antropofagia, o artista ratifica seus valores, com sua língua literária, e reafirma o ato de não se deixar curvar diante de certa poesia catequisada pela mesmice e pelo lugar comum, distanciando-se da homogeneidade de certo academicismo impotente e de certos parâmetros poéticos com que já nos acostumamos. De acordo com o próprio autor, revelado em uma entrevista, SagaraNAgens Fulinaímicas é um pedido de bênção a seus Mestres, imbuído do teor catártico que sua poesia contém, como o fragmento do poema que abre o livro:

 “guima meu mestre guima

em mil perdões eu vos peço
por esta obra encarnada
na carne cabra da peste”

 E afirma:

 “só curto a palavra viva

odeio essa língua morta
poema que presta é linguagem
pratico a SagaraNAgem
no centro da rua torta”

 No livro, os poemas se interpenetram, linguisticamente, libidinosos, doces e cruéis, vampiros de imagens ferrenhas, num aparente jogo de representação, onde o rosto do poeta se mostra e se esconde, de acordo com a mutação e o reflexo de seus espelhos interiores. Seus textos ora afirmam, ora desmentem o já dito, a nos lembrar um de seus ídolos, Raul Seixas, e a sua metamorfose ambulante. Sentimentos contraditórios, como se o autor quisesse, propositalmente, escorregar segredos pelos nossos olhos, ambiguamente, rindo de nós, a nos instigar: “Desnudem a minha esfinge!”

 “eu não sou flor que se cheire

nem mofo de língua morta”

 Na verdade, sua poesia apresenta vários (re) cortes, várias direções, vários abismos e formas de olhar a vida e o mundo. Como se o verdadeiro Artur se dissolvesse em outros, a cada poema, e essa dissipação o transformasse em alguém improvável, impalpável. Errante. Artur Gomes, ele mesmo, são muitos. E todos nós. Afinal, “o poeta é um fingidor”, ou não?

 “a carne que me cobre é fraca

a língua que me fala é faca
o olho que me olha vaca
alfa me querendo beta
juro que não sou poeta”

 Tantas vezes escatológico e sensual, numa performance textual que parece uma metralhadora giratória, o seu imaginário poético explode em tatuagens, navalhas, sangue, cicatrizes, punhais, facas, cuspe, pus, línguas, dedos, dentes, unhas, seios, paus, porra, carne, flores e lençóis, como um paraíso construído num inferno, e toca o nosso céu interior, nas ondas de um mar verde escondido em nosso peito. Na nossa melhor alma.

 Sem falsos pudores, o autor procura, em seu liquidificador de palavras, misturar o erótico, o profano e o sagrado, com cortes de cinismo e grande dose de humana solidariedade. Equilibrista na corda-bamba, sem rede de proteção, entre razão e delírio, instiga dualidades com seus versos de alta voltagem poética. Com linguagem rebuscada, seu trabalho ultrapassa os limites das páginas do livro, e reverbera como tambor, mesmo após o término de sua leitura.

 “a carne da palavra

: POESIA
l a v r a q u e s o l e t r o
todo Dia”

 A poesia de cunho social é, igualmente, referência obrigatória em seu trabalho, desde o início de sua carreira literária, marcadamente, em Jesus Cristo Cortador de Cana, de 1979, mas, principalmente, no memorável e premiado O Boi Pintadinho, de 1980. Esses poemas político-sociais, junto ao tema amoroso, também encontramos em outras obras importantes do poeta, como Suor & Cio, de 1985, Couro Cru & Carne Viva, de 1987 e 20 Poemas com Gosto de JardiNÓpolis & Uma Canção com Sabor de Campos, de 1990, BraziLirica Pereira: A Traição da Metáforas, de 2000, e se inserem em todos os seus livros posteriores, que culminam agora em SagaraNAgens Fulinaímicas.

 Em suas viagens imemoriais, o poeta mistura São Paulo, Copacabana, Búzios, calçadas, origem, chão, mares, cactos, sertão, onde tudo sangra de maneira violentamente bela e sem volta. Só a língua a ser reconstruída em poesia.

 “ando por são Paulo meio Araraquara

a pele índia do meu corpo
concha de sangue em tua veia
sangrada ao sol na carne clara”

 Artur Gomes sabe que ao escritor cabe proporcionar beleza e prazer. Entende que a poesia existe para expressar a condição humana, tocar o coração e a emoção do outro, e dar oportunidade para que seu interlocutor tenha chances de conhecer-se mais e melhor. E que só há um meio de o poeta conseguir seu intento: cuidar e aperfeiçoar a linguagem. Sempre coerente, Artur Gomes sublinha o essencial de seu pensamento, ratificando em seu trabalho que as duas maiores palavras da nossa língua são amor e liberdade.

 “a coisa que me habita é pólvora

dinamite em ponto de explosão
o país em que habito é nunca
me verás rendido a normas
ou leis que me impeçam a fala”

 SagaraNAgens Fulinaímicas veio confirmar o que os leitores do poeta já sabiam: Artur Gomes é um artista instigante, um cantador que desafia rótulos. No seu fazer poético, há um desfocar proposital da realidade, onírico e cinematográfico, que mergulha em constantes vulcões, em permanente ebulição – um texto em contínuo movimento. Sua poesia metalinguística, plástica, furiosa, delicada, passional, corporal, sexual, desbocada, invasiva, libertária, corrosiva, visceral, abusada, dissonante, épica é, antes de tudo, a poesia do livre desejo e do desejo livre. Nela, não há espaço para o silêncio: é berro, uivo, canto e dor. Pulsão. Textura de vida. Uma poesia que arde (em) seu rio de palavras.

 Sobre Tanussi Cardoso

leia mais aqui: https://arturgumes.blogspot.com/2020/05/tanussi-cardoso-entrevistas.html




ARTUR GOMES – mini Bio

Artur Gomes é poeta, ator, videomaker e produtor cultural. Tem diversos livros publicados, sendo os mais recentes SagaraNAgens Fulinaímicas (Edições Du Bolso – 2015), Juras Secretas (Editora Penalux, 2018) O Poeta Enquanto Coisa (Editora Penalux – 2020 ) e Pátria A(r)mada (Editora Desconcertos, 2019). Prêmio Oswald de Andrade – UBE-Rio – 2020 – Tem inédito: O Homem Com A Flor Na Boca e Da Nascente A Foz : Um Rio De Palavras (livro de memória)

Dirigiu a Oficina de Artes Cênicas do Instituto Federal Fluminense em Campos dos Goytacazes-RJ de 1975 a 2002.

Em 1983, criou o projeto Mostra Visual de Poesia Brasileira e, em 1993, idealizou o projeto Mostra Visual de Poesia Brasileira Mário de Andrade — 100 Anos — realizada pelo SESC São Paulo.

Em 1995 criou o Projeto Retalhos Imortais do SerAfim Oswald de Andrade Nada Sabia de Mim, executado pelo SESC-SP em várias unidades na capital e pelo Estado.

Em 1999 criou o FestCampos de Poesia Falada, realizado até 2019 pela Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima, em Campos dos Goytacazes-RJ

Em 2002 lançou o CD Fulinaíma Sax Blues Poesia , com seus parceiros Dalton Freire, Luiz Ribeiro, Naiman e Reubes Pess.

Em 2021 lançou dois e-books – Poesia Para Todas As Horas e O Homem Com A Flor Na Boca ou O Poeta Enquanto Coisa.

Desde 2007 produz performances poéticas com videopoemas. Em 2021 fez curadoria para a Mostra Cine e Vídeo De Poesia Falada. realizada pelo SESC Piracicaba-SP. Mantém na sua página Studio Fulinaíma de Produção Aidiovisual no facebook o Festival Cine Vídeo de Poesia Falada

https://www.facebook.com/studiofulinaima

Com seu videopoema  Goytacá Boy é um dos poetas que integram a Mostra Virtual de Videopoemas do Projeto Bossa Criativa, Arte de Toda Gente, realizado pela FUNRTE Rio.

Em 2021 integrou a Comissão Julgadora do Festival Cine Urutu, realizado pela Prefeitura de Pindamonhangaba-SP e fez curadoria para o Festival Ecos – Videopoemas, realizado pelo Instituto Federal Fluminense.

www.fulinaimamultiprojetos.blogspot.com

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