sexta-feira, 14 de abril de 2023

mar becker

 

eu gostava mais de nós antes, amor

eu gostava mais quando passávamos as tardes de domingo na cama

nesse tempo sonhávamos alto
e ao voltar um para o outro vínhamos trazendo nas mãos o fogo roubado dos deuses

.

foi da tua boca que ouvi pela primeira vez sobre as uvas que crescem nos vinhedos, em pleno deserto da patagônia

imaginei tudo em detalhes

o céu amplo
o fruto se abrindo como carne

a carne sendo devastada pela noite, num fulgor de estrelas

.

eu gostava mais quando bebíamos vinho barato, em taça de vidro. tu às vezes derramavas no meu ventre

era lindo ver-te bebendo dali, do abismo da minha pele

era lindo pensar que continuarias bebendo de mim sempre

supor que, mesmo se eu dissesse que nesse vinho havia dissolvido a cantarella da lucrécia bórgia

mesmo assim continuarias bebendo
morrendo - por amor ao meu corpo

.

eu gostava mais de mim. de ti. de nós. gostava mais quando ouvíamos o que quer que fosse da boca um do outro

tu me falavas a respeito da maldição que um dia haverá de recair sobre minha família

minha casa
minha posteridade numerosa

como se estivesse ouvindo último homem vivo sobre a terra
assim eu te ouvia, tua voz ao meu ouvido

e tu gozando dentro de mim

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mar becker
em: para a série amar, ruir, que imagino como uma plaquete. material em trabalho, 2019


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