quinta-feira, 11 de janeiro de 2024

o poeta enquanto coisa

 

 Artur Gomes, um poeta campista no palco da memória  por Deneval Siqueira


Artur Gomes é poeta de longa ancestralidade e forte techné, e sempre nos brinda com sua poíesis de tom ritmado na pesada musicalidade de herança oral. Campista goitacá, em 2020, lançou, O Poeta enquanto Coisa, cuja Psicótica – 67 transcrevo abaixo.

Psicótica – 67

com os dentes cravados na memória

não frequento academias
físicas – e muito menos literárias
minha palavra avária
está à beira do precipício
nem sei porque não continuei
internado no hospício
onde choques elétricos aconteciam as tantas
no manicômio Henrique Roxo
na cidade de Campos dos Goytacazes
onde a medicina psiquiátrica
era exercida por capatazes de médicos açougueiros
e um Capixaba de nome Vespasiano
não resistiu ao surto
explodiu a cabeça contra a parede
e nenhum jornal da cidade
noticiou o suicídio
que eu trago na lembrança
com os dentes cravados na memória

Artur Gomes
O Poeta Enquanto Coisa

Tendo como marca registrada da sua obra o palimpsesto e o intratexto, onde se confundem a voz do eu-lírico, refundado na memória dos jornais, do noticiário policialesco, na jornada absurda da crueldade a la Antonin Artaud e salpicada de telurismo, sua poética vem sobressaltar os menos avisados.

Retomando alguns traços de Jorge de Lima e Ana Cristina César, não fica no passado minemônico, pois seu traço lírico principal é do poeta memorialista cultural e telúrico, de perfil universalista, pois joga com o absurdo e com a persona teatral, desfazendo-se da loucura qualquer que seja, pois trabalha a arte do poema com desvario lírico musical a la

Bethoven, a la Wagner, compondo uma ópera do absurdo nas memórias subjacentes.

O percurso de Artur Gomes é muito interessante e enriquece a historiografia dos poetas brasileiros contemporâneos, assim como

Adriano Moura, Flávia D’Ângelo, entre outros não publicados ainda.

Vale a conferida. Estamos todos extasiados com o livro de poemas O Poeta Enquanto Coisa (2020) , título que sugere a materialização da memória no poema, de grau cabralino, e que segundo o autor-poeta “o instante que nos obriga a ser memorialistas”. Certo. A memória não perdoa, ela finca a faca no peito do leitor, sem sangue, mas cheia de feridas.

Deneval Siqueira
Pós-Doutor e professor Titular de Teoria e História Literária
Centro de Ciências Humanas e Naturais
Programa de Pós-graduação em Letras - Doutorado e Mestrado em Estudos
Literários da UFES 

 

 

O Poeta Enquanto Coisa

por Nuno Rau

Andamos no presente como vagando sobre um território rumo a outro, o futuro, para onde olhamos (além do olhar atento à nossa paisagem, o agora), mas sem perder a ligação com os territórios de onde viemos, o passado, de onde nos enviam mensagens-cabogramas. Ocorre que, antes, essas mensagens pareciam trilhar cabos unificados, e hoje elas nos vêm por uma rede de miríades de fios entrelaçados, com origens várias, por wi-fi, mescladas aos arcaicos sinais de fumaça, batidas de tambor.

O poeta contemporâneo tão mais contemporâneo se torna quando, atento ao presente absoluto para pensar a direção de seus passos, fica também atento aos sinais do passado, não dispensando o gesto ameríndio de perscrutar nas matas o aproximar-se da civilização predatória (como os nativos norte-americanos encostavam o ouvido nos trilhos do trem) enquanto observa, na tela de seu dispositivo, a nuvem de futuros prováveis, nem todos gloriosos: assim um poeta se torna criador de mundos.

Artur Gomes performa, em “O poeta enquanto coisa”, a sua dança tribal em que diversos dados da tradição se mesclam em sua reinterpretação ancorada no hoje, o que sempre implica numa tomada de posição política do poeta, que brindamos aqui, com alegria, porque nos traz luz sobre um momento particular de trevas na vida civil. É por estas vias que o liquidificador estético do poeta mistura antropofagicamente em suas iguarias-poemas, para que brindemos, deuses gregos com orixás, filosofia e orgia, mente e corpo, política e sexo, o corpo que precisa estar presente cada vez mais nos poemas, afastando quando possível os séculos de metafísica que nos oprimem. Evoé, Artur! Que seu canto ecoe pelos corações e mentes do presente e do tempo que virá.


Nuno Rau, arquiteto, professor de história da arte, tem poemas em diversas revistas literárias, e nas antologias Desvio para o vermelho, do Centro Cultural São Paulo, Escriptonita, que co-organizou, e 29 de Abril: o verso da violência. Publicou o livro Mecânica Aplicada, poemas, finalista do 60º Prêmio Jabuti e do 3º Prêmio Rio de Literatura. Ministra oficinas de poesia no Instituto Estação das Letras e é coeditor da revista mallarmargens.com



 Fé no Evoé:

Confissões dionisíacas na poética e política de Artur Gomes

 

Igor Fagundes *

 Depois das excitadas e excitantes Juras secretas, de 2018, o poeta e artista multimídia Artur Gomes volta a tornar pública sua jura de amor e fidelidade ao arcaico deus Dionísio em O poeta enquanto coisa, de 2019, incorporando as ébrias forças de Baco sob novos goles e ritos, tão poéticos quanto políticos, numa contemporaneidade que avança em lama e vertigem e, assim, exige a potência do mítico da palavra corpórea e originária. Comparece ao ethos deste livro a mesma embriaguez fulinaímica de sempre: a que toma, mediante o delírio atento frente aos passos obtusos do ser e estar das gentes, cada palavra como taça, vinho tinto e uma tinta capaz de, em contrapartida, rogar lúcida a passagem dilacerada do humano pelas páginas turvas do mundo. Que, em prefácio, ressoe agora-aqui a face mesma de assonâncias de Artur. Que em pré-faces (a da melopeia, a da fanopeia, a da logopeia) o poeta se apresente, por assim dizer, multifacetado, contaminando-nos com os tempos de seu ritmo venéreo. Que se capte, enfim, o próprio escape das imagens ímpares e afiadas pelo gume de Gomes, repetindo-se – com outros nomes e aliterações – seus deleitosos jogos de palavras em nossa fome de análise e anúncio: incorporemos, nessa prosa de abertura, a música de seus trocadilhos, a curvatura das paranomásias no retilíneo das linhas do livro: a que verte vulva em verso, Afrodite em afro-ditos de orixás em orgias com Ártemis e Hermes.

       Que o veraz poeta, para aquém do denominado moderno, para além do já clichê pós-moderno, para quem dos rótulos e taxonomias previstas pelas literárias teorias, atravessa o pós-pós de tudo e mesmo o pó da historiografia. Artur Gomes se exibe, ao revés, pré-antigo (tão dentro quanto fora do chronos) na atualidade incorrigível de uma poesia dedicada à Gaia (lê-se na dedicatória: “e a Terra/Mãe/Terra a musa eterna dos meus estados de surtos dos meus estados de sítio dos meus estados de cio”). Enquanto bebe, no tempo cronológico (“tempo de bestas”, “na caretice dos bostas”), as lutas e lutos de sua época e século (“esse país que atravesso corpo devassado em grito na cara do silêncio”), inebria-os e subverte-os no tempo imemorial da Terra para fundar o Aion sem fundo do instante-em-transe da experiência artística. Por isso, não basta citar, em cacoete analítico, os tiques nervosos que convêm à crítica (mencionar modernismos influentes, a geração beat, a poesia pop, a tropicália...) para entender sua lírica. Nem seria preciso. Soaria até repetitivo elencar, neste preâmbulo, as personagens caras a Gomes, forjando-o efeito do esbarro nelas todas, do encontro com elas, das tramas e transas com obras e corpos do passado e presente: o poeta já o faz e cumpre a coletânea como a dramaturgia de sua errância pelo imaginário e pelo inconsciente, os quais derramam sobre o copo do real e da consciência alter-egos confessos e inventados – tudo o que for líquido nos vasos sanguíneos do poeta alcooliza o poemário com o híbrido de fogo fátuo e frios fatos.

Artur Gomes – assinatura por vir, heteronímica, heteromórfica – assim apresenta em O poeta enquanto coisa suas juras não mais secretas, mas públicas, ainda púbicas, aos afetos que compõem e decompõem sua literaturavida. Seus versos são rascunhos, rasuras e ranhuras a passar a limpo os nexos e os nervos de sua fatura formal e estilística, deixando sobre a página tanto um rastro de unha quanto o esmalte dos escritos e vozes que em sua alma avultam e nos dedos instauram cutículas.

 Tais intertextos e intratextos, ou ainda, tais hipertextos insaciáveis se disseminam pela obra na mesma proporção com que se concentram em cada poema, lado a lado ou embaralhados; falseando nos rebentos líricos as certidões de batismo e, em poligamia, proliferando as certidões de casamento com as leituras/releituras de livros, bem como com o folhear de rostos amigos, ou com o riso e risco do desconhecido, não obstante o postergar de comprovantes de residência, de pátrias de origem: cada gesto, um tanto Ulisses, desmente Ítacas, deslinda labirintos (do Minotauro?) ou mesmo fios (de Ariadne?), teatralizando ad infinitum as alteridades que servem como impressão digital provisória e polimórfica para alguma identidade fluida, fragmentada, ao rés da fantasia. Mas nada disso seria possível – nenhuma conversa com livros, nenhum sexo com as líricas de um outro e de uma outra – seria concreto sem a lascívia uma vez mais dionisíaca de um cérebro em gozo sináptico, em psiké-análise, em psiké-catálise, em psiké-catábase: esta que põe no divã do poeta as divas Oxum e Afrodite atravessadas, fosse a sala do analista também um templo pagão ou uma ilha de Lesbos, de modo que Artur construa entre sua cama e seu karma de vate uma Igreja imoral/amoral do Reino de Zeus. E dos muitos Eus que exilam hóstias e comungam com o jamais fixo e intransigente credo.

      Esta, a sacralização do profano e do erótico, ou a profanação do sagrado enquanto humano, do poeta enquanto coisa (“o amor mesmo quando profano / tem muito mais de sagrado”): filho de um deus com uma mortal, Dionísio dança na recorrência da palavra “vinho” no livro, a exemplo dos versos:  aqui / a poesia pulsa / na veia / no vinho”; por vinho tinto e poesia”; ela tem sede de vinho / nas madrugadas dos bares”; “o vinho do tempo na boca”; “em nossas bocas tinto – vinho”; “beijo tua boca ainda suja / do vinho que sobrou”; “me consagro teu amante / pelos vinhedos de Baco / no ápice sagrado / da su-real pornofonia”. A embriaguez dos significantes e dos significados é a que tanto forja imagens insólitas (como a de um “céu de estanho” ou como em “ela mastiga meus ponteiros”) quanto a que costura melodias bem trabalhadas entre vogais, consoantes ( “entre paredes pedras facas de dois gumes / nos parreirais depois da lua), ratificando a inteligência verbal (a logopeia) de Artur Gomes dobrada em melopeia (música) e fanopeia (imagética). Visualidade provocada, a saber, não só pelas imagens significadas pelos significantes, mas visualidade ou imagem do próprio significante, o qual, dentro de si, dá à luz significâncias outras (“EuGênio Andrade”, “Afro-dite, “BolivariAndo”, “eletriCidade”), pois Artur Gomes – nesta “pornofonia” – é mestre na criação de neologismos (em tudo se vê uma “carNavalha”).

      

Não apenas o corpo do homem, da mulher, se sensualiza e se sexualiza sob a força cósmica de Eros. É o poema mesmo que, em O poeta enquanto coisa, é corpo sensualizado, sexualizado, da mesma maneira que a cidade, o mundo, os tempos e o Tempo são Eros, vez que a palavra é pele e poro (duas palavras aliterantes e frequentes em Artur Gomes). Nessa porosidade, o poeta se entende permeável a coisas e pessoas (a pessoas já misturadas às coisas, a pessoas já coisas): “por entre poros entre pelos / minhas unhas tuas costas”. Também por isso, por essa poesia de tamanho contato, fricção, a relação com a língua se confirma erotizada e – vale dizer – tanto a língua física quanto a verbal, o que equivale a dizer que escrita e oralidade se reencontram no poeta: a sofisticação da escritura literária não perde (pelo contrário, potencializa) a dimensão primigênia do poeta como cantor, como ator na divina língua de Baco”, a qual se exalta mediante a recorrência também da palavra “boca” e da palavra “coxa”: uma é a que beija, lambe, morde e degusta; outra é a beijada, a lambida, a mordida, a degustada. Ambas em rima toante também entoam ritmos e ritos profanos-sagrados:

 

o poema fala do teu corpo
como se o tocasse 
o reconhecesse em cada verso
cada palavra que sai da boca 
como um canto bíblico
com louvor profano 

 Nessa performance e performatividade lingual-linguística, todo signo cisma um erotismo entre o significante e o significado, sim, mas também entre página e palco, palco e praça, praça e povo, a babel dos povos e a babel das palavras: daí, tantos trocadilhos (troca-trocas, orgias, surubas...), como o da “flór do lótus” com a “flor do lácio”, o das “coxas” com as “costas”, o do “fauno” com a “flauta”, o da “alvorada” com o “alvoroço”, o da “antítese” com a “Antígona”. Eis a língua física, outrossim, a trocar com a verbal, mas sendo ao mesmo temo pelo verbal trocado, e vice-versa. Eis o poeta trocando com outros poetas ou sendo trocado por poetas outros, vestindo a roupa dos outros e tirando a sua roupa para ser outro: Federico Baudelaire, Gigi Mocidade, Bracutaia Silva, Federika Bezerra, Cristina Bezerra etc. O poeta, analista translógico da psique, troca com sua psicanalista. E o poeta se tenta analista de si mesmo, elevando o caos para a troca de seu nome Artur por timbres e assinaturas novos. Do mesmo modo, o nome dos poetas que existem, os que morreram e ainda não, os vivos hoje e sempre, vai se trocando, em rearranjos da memória (e do recriativo esquecimento). Artur Gomes troca poetas em seu corpo e, trocando com eles, entende que todos trocam entre si, a exemplo do diálogo poético de Clarice com Baudelaire. Mais ainda: o corpo do poeta troca com o corpo do poema e, consoante em “Poética”, a metalinguagem elabora um troca-troca de textos sob o mesmo título, pois o poema “Poética” se metamorfoseia em outros poemas: o tema “Poética” permanece, mas se trocando: o mesmo sendo diferente. A palavra “outro(s)” se sugere, enfim, ouro neste livro, e é nessa não indiferença ao outro, que o poético se faz ético e político. E nessa política da e pela diferença, a cidade do corpo se troca e vira o corpo da cidade. Assim, o poeta é – quando e enquanto coisa.

      No meio de tantas referências e reverências, borrões (d)e assinaturas (como as de Mário de Andrade, Drummond, Torquato Neto, Rimbaud, Mallarmé, Tanussi Cardoso, Tchello d’Barros, Jiddu Saldanha, Ronaldo Werneck, Reinaldo Valinho Alvarez, Reinaldo Jardim, deuses e deusas gregas, orixás), o “anjo torto” de Artur Gomes não sopra no livro Manoel de Barros ou James Joyce, escritores também engenhosos e que se vale de muitos ilogismos ou neologismos. Todavia, O poeta enquanto coisa não deixa, na qualidade de título de livro, de repercutir o Retrato do artista quando coisa (de Barros) e o Retrato do artista quando jovem (de Joyce).  Do mesmo modo, não havendo menção (ao menos, explícita e intencional), ao “Teatro Oficina” de José Celso Martinez Corrêa, a dimensão orgiástica da arte e a reunião – não menos sacro-promíscua – de mitos gregos e africanos, a assimilação pela cultura ocidental de outras culturas, aparece em Artur Gomes nesta, quiçá, Poesia Oficina. A relação gozosa e experimental com que a palavra se faz poema e se teatraliza faz de seus livros um grande laboratório da língua, do corpo e da cultura, com repercussões nitidamente políticas.

 Se Pantanal é o corpo poético e o poema experimental, de aparente falta de lógica, lembrando o discurso infantil, no Manoel de Barros do Retrato do artista quando coisa, a urbe é o corpo prenhe de sexualidade e sensualidade em Artur Gomes, nos supostos ilogismos do discurso adulto que se vê fragmentado e devorado por Eros e Thanatos, e no qual a relação sujeito-objeto já não dá conta quando o humano se vê coisa (não mais agente ou paciente, voz ativa ou passiva: talvez, as duas ao mesmo tempo). Como no Pantanal de Barros, a linguagem de Gomes é lamacenta, cheia de líquidos e delírios: a seiva se expande e se intensifica com (ou se troca por) suor e sêmen. Lama, agora, é a cama: o mangue ou o pantaneiro é a cama de Artur onde dormem, acordam, sonham, gozam e ardem todos os corpos (humanos e não humanos) aqui já citados e dispostos nos lençóis, colchas e fronhas da página.

Por outro lado, temos na trajetória literária de James Joyce, a intertextualidade com Ulisses de Homero. Artur Gomes ouve o canto da sereia em sua cama, livro, divã, e talvez do inconsciente escute a voz de um “artista quando jovem”, vinda de Joyce. Nesta, a personagem protagonista Stephen Dedalus, aquele que será adiante o anti-herói de Ulysses, diz à sua mãe que não poderá seguir a vocação de padre. Ele descobriu uma nova e grandiosa missão em sua vida: a de criar uma nova e poderosa mitologia para o povo irlandês. O romance autobiográfico de Joyce narra a infância de Dedalus (máscara de Joyce), personagem que vai aparecer novamente em Ulysses. A vida do pequeno Dedalus é marcada pela religiosidade da mãe. Ela quer que o filho siga a carreira eclesiástica. Vários padres fazem parte da vida de Dedalus e vão moldando sua consciência. O momento de virada na vida da personagem principal se dá no momento em que ele escuta um horrível sermão feito por um padre sobre o inferno que o deixa muito impressionado. Dedalus passa a viver como um carola seguindo à risca todos os jejuns e mandamentos da igreja católica. Nesse momento, ele até se sente como um futuro padre. Com a sequência do romance, vemos o jovem Dedalus passar de uma fase religiosa para uma de sensualidade. Sente-se cada vez mais obcecado com a ideia da confissão. Ele então confessa a um padre todos os pecados sensuais que pratica. Abandona definitivamente a convocação de ser padre e passa a se interessar por ideias artísticas e estéticas. Dedalus abandona a carreira de padre mas não a fé.

 Assim, Artur Gomes se obstina pela ideia de confissão, mas de uma confissão dionisíaca. Primeiro, fazendo suas Juras Secretas, suas confidências sensuais, sexuais, eróticas, fulinaímicas. Em suma, suas sagaranagens (há algo de Joyce em Guimarães Rosa, ou vice-versa; no Rosa que há em Artur Gomes, no sagarana dos três). Agora, em O poeta enquanto coisa, arriscando-se a abandonar todo credo político-religioso paralisante, move-se – avesso ao dogmático – no sentido de dançar o mitopoético, o dionisíaco. Daí, uma Igreja Universal do Reino Zeus faça todo sentido na cosmogonia e teogonia de Artur Gomes. Em primeiro lugar, como deboche diante de quaisquer fundamentalismos. Em segundo lugar, como denúncia do que um Reino de Deus pode roubar do político o vigor do poético, preferindo um louvor a Dionísio a um Deus que não sabe dançar, que não sabe gozar, na liturgia de uma poesia que roga

 

por um poema 
que desconcerte
entorte
desconforte
arrombe a porta
dos céus 
da tua boca

arranhe os dentes
da loba
arrebanhe os cordeiros
no pasto
e lhes ensine
a subverter
as ordens do pastor

assumo o risco
não sou demo
nem corisco 
eu sou cantor

 

 Iansã é quem me lava

Oxossi é quem me leva
Ogum é quem me manda
Oxum é quem me guarda

 

eu sou o que invoca 

o que provoca 
e incorpora 
desconcentra 
desconforta 
desconstrói 
e desconcerta

 

eu sou o que interpreta representa 
o que inventa 
e desafora

 

o Anjo Torto 
graças a Zeus 
a pedra e ao Machado de Xangô

 

a Capitã do Mato Caipora 
me xinga de poeta enganador 
mal sabe ela 

que eu sou da reza 
que o homem que se preza

nunca se escraviza 
com chicote de feitor

 

 

 *Igor Fagundes é poeta, ensaísta, doutor em Poética e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Autor, dentre outros, de pensamento dança (2018) e Poética na incorporação (2016). Macumbança (2020)




 

O  Homem Com

A Flor Na Boca

:

Deus Não Joga Dados

 

 Deus não joga dados

Mas a gente lança

tenta –

em arte tudo se inventa

 

Eu tenho flores

com a língua atravessada em cada canto da boca

EuGênio Mallarmè

 

 Livros

Dê  Beijos

Dê  Lírios

 

 Dê Líricas

 

Bebo teus olhos atlânticos

e tua voz portuguesa

como quem bebe no Tejo

saudades de Lisboa

 

caminho com os teus passos

em direção ao poema do desassossego

Florbela Espanca Alberto Caieiro Fernando Pessoa

 

 Baudelíricas Baudeléricas

 

o poema um beijo em tua boca bruna tem um B entranhado entre as coxas a pele das amoras gemem quando venta forte em tuas fendas do hoje comi duas nessa manhã incendiária quando vim da cacomanga trouxe nos bolsos da calça remendada linha carretel cola de tribo cerol bambu papel de pipa pique bandeira pique esconde jabuti preá da índia pés de abóboras replantáveis o pé de abacate ainda não nasceu Isadora chegou ontem 30 de março numa tarde outono à sol aberto noite gelada frio na medula maya ainda escreve sobre depressão no tempo falks may abriu as asas pra malásia e a outra mora do outro lado em outra terra rio grande muito longe tenho sede

 

 com os dentes cravados na memória

 

tontas  vezes me re-par-to mul-ti-pli-co em 7 alegria noves fora nada tudo é baudelérico federico me dizia leonardo fez 80 afonso 84 na rede somos 3 quando ele vem já somos 4 em temporais escrevo e sangro como boi antes da morte muitos outros já se foram e nem gozaram em 69 se eu me lembrar 64 não posso esquecer 68 era uma noite de maio peguei o trem pra são cristóvão depois avião para brasília quando voltei no espelho dédala estava dentro da tipografia

Em 1995 no Centro Cultural Maria Antônia, na USP, em cia da minha querida amiga Silvia Passareli, assisti uma encenação de Cacá de Carvalho, com texto de Pirandello que me pegou da medula ao osso. A plateia era de 40 pessoas apenas e Cacá circulava entre nós com a sua energia pulsante magnética. O texto era um fragmento de uma trilogia que ele deu o nome de O Homem Com A Flor Na Boca. E a ele, Cacá de Carvalho, dedicamos este livro.

 

 Ofício de Poeta

 

franzir a noite

é o mesmo que bordar o dia

costuro o tempo

com linha de pescar moinhos de vento

entre o franzido e o bordado

escrevo um desenredo

e vou foto.grafando

filmando poesia

na solidão dos meus brinquedos

 

II

 

costuro arco-íris

com linhas de bordar

teus olhos d´água


III

 

pego na enxada diariamente

para capinar o quintal

da estação três cinco três

 

literalmente

 

não é metáfora

para lamber cio da terra

como na canção que Chico fez

 

IV

 

a poesia as vezes me vem da fala

outras de vozes absurdas

na travessia cantei pontos de Jongo

em Folias de Reis Festas Juninas

despachos de Macumba

para me defender dos capataz

nunca vivi porto seguro

na minha praia não tem cais

escrevo como falo aprendi com os ancestrais

 

V    

com uma câmera nas mãos   

um poema na cabeça

vamos filmar o poema

antes que desapareça

 

A folha de papel em branco sobrevoa a transparência diante do espelho onde me espreitam dois grandes olhos  feito jabuticabas de um pomar que inda procuro a palavra escrita ainda não dita de um desejo impuro e a folha branca de papel pousa em tuas mãos como um pássaro não nascido ainda vindo do futuro.

          

carne proibida 2

 

abusas no meu e-mail

no centro de gravidade

desse meu corpo elétrico

 

não me dissestes porque veio

acender a lâmpada

na metafísica dos poros

 

devoro teu corpo atlântico

com meu canino esquerdo

 

minha fome é quântica

como um barril de pólvora

com o pavio aceso

 

II

salsa alecrim alfavaca cebolinha

azeite limão hortelã vinagre

azeite com pimenta

 

quem resiste esse peixe temperado

que a poesia em mim inventra

 

vem lambe minha língua

que esse me(u)l sal te alimenta

 

                tempestade/temporais

 

eu sou avesso atravesso a cidade

com o que me interessa

as vezes sou sossego outras vezes tenho pressa

 

não procuro o que não quero

me abstenho no que faço

me abstrato quando posso

me concreto em cada passo

 

o compasso é argamassa

o absinto quando traço

uma linha nunca reta

da palavra em descompasso

 

se sou torto não importa

em cada porta risco um ponto

pra revelar os meus destroços

no alfabeto do desterro

a carnadura dos meus ossos


Terra em Transe

 

em 1990 estava eu em Registro em mais uma transa  literária que tinha sido iniciada em Jardinópolis depois de uma passagem por Batatais, onde Hygia Calmon Ferreira, a musa do poema Sagaranagens Fulinaímicas, me apresentou algumas  estudantes  do curso de letras na UNESP, em São José do Rio Preto.

Em Batatais, quando desci do palco do Teatro Municipal, dois lábios vermelhos carnudos encarnados e dois olhos azuis vidrados vibravam em minha direção, era Cláudia, que ganhou  beijo na boca e alguns anos depois Copacabana consumou  nossos desejos.

Em Registro era uma noite de Sarau no restaurante onde jantávamos  e eu ali absurdado com os poetas soprando palavras ao vento, foi quando Mariana de Piracicaba, vindo a mim feito ondas, me ofereceu saliva ardente numa pétala de rosa branca e espuma vermelha de batom -   delírios em sua língua de Vênus.

 Desde então queimando em mar de fogo me Registro




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