Artur
Gomes é poeta de longa
ancestralidade e forte techné, e sempre nos brinda com sua poíesis de tom ritmado
na pesada musicalidade de herança oral. Campista goitacá, em 2020, lançou, O
Poeta enquanto Coisa, cuja Psicótica – 67 transcrevo abaixo.
Psicótica – 67
com os dentes cravados na memória
não frequento academias
físicas – e muito menos literárias
minha palavra avária
está à beira do precipício
nem sei porque não continuei
internado no hospício
onde choques elétricos aconteciam as tantas
no manicômio Henrique Roxo
na cidade de Campos dos Goytacazes
onde a medicina psiquiátrica
era exercida por capatazes de médicos açougueiros
e um Capixaba de nome Vespasiano
não resistiu ao surto
explodiu a cabeça contra a parede
e nenhum jornal da cidade
noticiou o suicídio
que eu trago na lembrança
com os dentes cravados na memória
Artur Gomes
O Poeta Enquanto Coisa
Tendo como marca registrada da sua obra o palimpsesto e o intratexto, onde se
confundem a voz do eu-lírico, refundado na memória dos jornais, do noticiário
policialesco, na jornada absurda da crueldade a la Antonin Artaud e salpicada
de telurismo, sua poética vem sobressaltar os menos avisados.
Retomando alguns traços de Jorge de Lima e Ana Cristina César, não fica no
passado minemônico, pois seu traço lírico principal é do poeta memorialista
cultural e telúrico, de perfil universalista, pois joga com o absurdo e com a
persona teatral, desfazendo-se da loucura qualquer que seja, pois trabalha a
arte do poema com desvario lírico musical a la
Bethoven, a la Wagner,
compondo uma ópera do absurdo nas memórias subjacentes.
O percurso de Artur Gomes é muito interessante e enriquece a historiografia dos
poetas brasileiros contemporâneos, assim como
Adriano Moura, Flávia
D’Ângelo, entre outros não publicados ainda.
Vale a conferida. Estamos todos extasiados com o livro de poemas O Poeta
Enquanto Coisa (2020) , título que sugere a materialização da memória no poema,
de grau cabralino, e que segundo o autor-poeta “o instante que nos obriga a ser
memorialistas”. Certo. A memória não perdoa, ela finca a faca no peito do
leitor, sem sangue, mas cheia de feridas.
Deneval Siqueira
Pós-Doutor e professor Titular de Teoria e História Literária
Centro de Ciências Humanas e Naturais
Programa de Pós-graduação em Letras - Doutorado e Mestrado em Estudos
Literários da UFES
O Poeta Enquanto Coisa
por Nuno Rau
Andamos no presente como vagando sobre um
território rumo a outro, o futuro, para onde olhamos (além do olhar atento à
nossa paisagem, o agora), mas sem perder a ligação com os territórios de onde
viemos, o passado, de onde nos enviam mensagens-cabogramas. Ocorre que, antes,
essas mensagens pareciam trilhar cabos unificados, e hoje elas nos vêm por uma
rede de miríades de fios entrelaçados, com origens várias, por wi-fi, mescladas
aos arcaicos sinais de fumaça, batidas de tambor.
O poeta contemporâneo tão mais contemporâneo se torna quando, atento ao
presente absoluto para pensar a direção de seus passos, fica também atento aos
sinais do passado, não dispensando o gesto ameríndio de perscrutar nas matas o
aproximar-se da civilização predatória (como os nativos norte-americanos
encostavam o ouvido nos trilhos do trem) enquanto observa, na tela de seu
dispositivo, a nuvem de futuros prováveis, nem todos gloriosos: assim um poeta
se torna criador de mundos.
Artur Gomes performa, em “O poeta
enquanto coisa”, a sua dança tribal em que diversos dados da tradição se
mesclam em sua reinterpretação ancorada no hoje, o que sempre implica numa
tomada de posição política do poeta, que brindamos aqui, com alegria, porque
nos traz luz sobre um momento particular de trevas na vida civil. É por estas
vias que o liquidificador estético do poeta mistura antropofagicamente em suas
iguarias-poemas, para que brindemos, deuses gregos com orixás, filosofia e
orgia, mente e corpo, política e sexo, o corpo que precisa estar presente cada
vez mais nos poemas, afastando quando possível os séculos de metafísica que nos
oprimem. Evoé, Artur! Que seu canto ecoe pelos corações e mentes do presente e
do tempo que virá.
Nuno Rau, arquiteto, professor de história da arte, tem poemas em diversas revistas literárias, e nas antologias Desvio para o vermelho, do Centro Cultural São Paulo, Escriptonita, que co-organizou, e 29 de Abril: o verso da violência. Publicou o livro Mecânica Aplicada, poemas, finalista do 60º Prêmio Jabuti e do 3º Prêmio Rio de Literatura. Ministra oficinas de poesia no Instituto Estação das Letras e é coeditor da revista mallarmargens.com
Fé no Evoé:
Confissões
dionisíacas na poética e política de Artur Gomes
Igor Fagundes *
Depois das excitadas e excitantes Juras secretas, de 2018, o poeta e artista multimídia Artur Gomes volta a tornar pública sua jura de amor e fidelidade ao arcaico deus Dionísio em O poeta enquanto coisa, de 2019, incorporando as ébrias forças de Baco sob novos goles e ritos, tão poéticos quanto políticos, numa contemporaneidade que avança em lama e vertigem e, assim, exige a potência do mítico da palavra corpórea e originária. Comparece ao ethos deste livro a mesma embriaguez fulinaímica de sempre: a que toma, mediante o delírio atento frente aos passos obtusos do ser e estar das gentes, cada palavra como taça, vinho tinto e uma tinta capaz de, em contrapartida, rogar lúcida a passagem dilacerada do humano pelas páginas turvas do mundo. Que, em prefácio, ressoe agora-aqui a face mesma de assonâncias de Artur. Que em pré-faces (a da melopeia, a da fanopeia, a da logopeia) o poeta se apresente, por assim dizer, multifacetado, contaminando-nos com os tempos de seu ritmo venéreo. Que se capte, enfim, o próprio escape das imagens ímpares e afiadas pelo gume de Gomes, repetindo-se – com outros nomes e aliterações – seus deleitosos jogos de palavras em nossa fome de análise e anúncio: incorporemos, nessa prosa de abertura, a música de seus trocadilhos, a curvatura das paranomásias no retilíneo das linhas do livro: a que verte vulva em verso, Afrodite em afro-ditos de orixás em orgias com Ártemis e Hermes.
Que o veraz
poeta, para aquém do denominado moderno, para além do já clichê pós-moderno,
para quem dos rótulos e taxonomias previstas pelas literárias teorias, atravessa
o pós-pós de tudo e mesmo o pó
da historiografia. Artur Gomes se exibe, ao revés, pré-antigo (tão
dentro quanto fora do chronos)
na atualidade incorrigível de uma poesia dedicada à Gaia (lê-se na dedicatória:
“e a Terra/Mãe/Terra a musa eterna dos meus estados de
surtos dos meus estados de sítio dos meus estados de cio”). Enquanto bebe, no tempo cronológico (“tempo de
bestas”, “na caretice dos bostas”), as lutas e lutos de sua época e
século (“esse país que atravesso corpo devassado em grito na cara do
silêncio”), inebria-os e subverte-os no tempo imemorial da Terra para
fundar o Aion sem fundo do instante-em-transe da
experiência artística. Por isso, não basta citar, em cacoete analítico, os
tiques nervosos que convêm à crítica (mencionar modernismos influentes, a
geração beat, a poesia pop, a tropicália...) para entender
sua lírica. Nem seria preciso. Soaria até repetitivo elencar, neste preâmbulo,
as personagens caras a Gomes, forjando-o efeito do esbarro nelas todas, do
encontro com elas, das tramas e transas com obras e corpos do passado e
presente: o poeta já o faz e cumpre a coletânea como a dramaturgia de sua
errância pelo imaginário e pelo inconsciente, os quais derramam sobre o copo do
real e da consciência alter-egos confessos e inventados – tudo o que for
líquido nos vasos sanguíneos do poeta alcooliza o poemário com o híbrido
de fogo fátuo e frios fatos.
Artur Gomes –
assinatura por vir, heteronímica, heteromórfica – assim apresenta em O poeta enquanto coisa suas juras não
mais secretas, mas públicas, ainda púbicas, aos afetos que compõem e decompõem
sua literaturavida. Seus
versos são rascunhos, rasuras e ranhuras a passar a limpo os nexos e os nervos
de sua fatura formal e estilística, deixando sobre a página tanto um rastro de
unha quanto o esmalte dos escritos e vozes que em sua alma avultam e nos dedos
instauram cutículas.
Tais intertextos e intratextos, ou ainda, tais hipertextos insaciáveis se disseminam pela obra na mesma proporção com que se concentram em cada poema, lado a lado ou embaralhados; falseando nos rebentos líricos as certidões de batismo e, em poligamia, proliferando as certidões de casamento com as leituras/releituras de livros, bem como com o folhear de rostos amigos, ou com o riso e risco do desconhecido, não obstante o postergar de comprovantes de residência, de pátrias de origem: cada gesto, um tanto Ulisses, desmente Ítacas, deslinda labirintos (do Minotauro?) ou mesmo fios (de Ariadne?), teatralizando ad infinitum as alteridades que servem como impressão digital provisória e polimórfica para alguma identidade fluida, fragmentada, ao rés da fantasia. Mas nada disso seria possível – nenhuma conversa com livros, nenhum sexo com as líricas de um outro e de uma outra – seria concreto sem a lascívia uma vez mais dionisíaca de um cérebro em gozo sináptico, em psiké-análise, em psiké-catálise, em psiké-catábase: esta que põe no divã do poeta as divas Oxum e Afrodite atravessadas, fosse a sala do analista também um templo pagão ou uma ilha de Lesbos, de modo que Artur construa entre sua cama e seu karma de vate uma Igreja imoral/amoral do Reino de Zeus. E dos muitos Eus que exilam hóstias e comungam com o jamais fixo e intransigente credo.
Esta, a sacralização do profano e do erótico, ou a profanação do sagrado enquanto humano, do poeta enquanto coisa (“o amor mesmo quando profano / tem muito mais de sagrado”): filho de um deus com uma mortal, Dionísio dança na recorrência da palavra “vinho” no livro, a exemplo dos versos: “aqui / a poesia pulsa / na veia / no vinho”; “por vinho tinto e poesia”; “ela tem sede de vinho / nas madrugadas dos bares”; “o vinho do tempo na boca”; “em nossas bocas tinto – vinho”; “beijo tua boca ainda suja / do vinho que sobrou”; “me consagro teu amante / pelos vinhedos de Baco / no ápice sagrado / da su-real pornofonia”. A embriaguez dos significantes e dos significados é a que tanto forja imagens insólitas (como a de um “céu de estanho” ou como em “ela mastiga meus ponteiros”) quanto a que costura melodias bem trabalhadas entre vogais, consoantes ( “entre paredes pedras facas de dois gumes / nos parreirais depois da lua), ratificando a inteligência verbal (a logopeia) de Artur Gomes dobrada em melopeia (música) e fanopeia (imagética). Visualidade provocada, a saber, não só pelas imagens significadas pelos significantes, mas visualidade ou imagem do próprio significante, o qual, dentro de si, dá à luz significâncias outras (“EuGênio Andrade”, “Afro-dite, “BolivariAndo”, “eletriCidade”), pois Artur Gomes – nesta “pornofonia” – é mestre na criação de neologismos (em tudo se vê uma “carNavalha”).
Não apenas o corpo do homem, da mulher, se sensualiza e se
sexualiza sob a força cósmica de Eros. É o poema mesmo que, em O poeta enquanto coisa, é corpo
sensualizado, sexualizado, da mesma maneira que a cidade, o mundo, os tempos e
o Tempo são Eros, vez que a palavra é pele e poro (duas palavras aliterantes e frequentes em Artur Gomes).
Nessa porosidade, o poeta se entende permeável a coisas e pessoas (a pessoas já
misturadas às coisas, a pessoas já coisas): “por entre poros entre pelos
/ minhas unhas tuas costas”. Também por isso, por essa poesia de tamanho
contato, fricção, a relação com a língua se confirma erotizada e – vale dizer –
tanto a língua física quanto a verbal, o que equivale a dizer que escrita e
oralidade se reencontram no poeta: a sofisticação da escritura literária não
perde (pelo contrário, potencializa) a dimensão primigênia do poeta como
cantor, como ator “na divina
língua de Baco”, a qual se
exalta mediante a recorrência também da palavra “boca” e da palavra “coxa”:
uma é a que beija, lambe, morde e degusta; outra é a beijada, a lambida, a
mordida, a degustada. Ambas em rima toante também entoam ritmos e ritos
profanos-sagrados:
o poema fala do teu corpo
como se o tocasse
o reconhecesse em cada verso
cada palavra que sai da boca
como um canto bíblico
com louvor profano
Nessa performance e performatividade lingual-linguística, todo signo cisma um erotismo entre o significante e o significado, sim, mas também entre página e palco, palco e praça, praça e povo, a babel dos povos e a babel das palavras: daí, tantos trocadilhos (troca-trocas, orgias, surubas...), como o da “flór do lótus” com a “flor do lácio”, o das “coxas” com as “costas”, o do “fauno” com a “flauta”, o da “alvorada” com o “alvoroço”, o da “antítese” com a “Antígona”. Eis a língua física, outrossim, a trocar com a verbal, mas sendo ao mesmo temo pelo verbal trocado, e vice-versa. Eis o poeta trocando com outros poetas ou sendo trocado por poetas outros, vestindo a roupa dos outros e tirando a sua roupa para ser outro: Federico Baudelaire, Gigi Mocidade, Bracutaia Silva, Federika Bezerra, Cristina Bezerra etc. O poeta, analista translógico da psique, troca com sua psicanalista. E o poeta se tenta analista de si mesmo, elevando o caos para a troca de seu nome Artur por timbres e assinaturas novos. Do mesmo modo, o nome dos poetas que existem, os que morreram e ainda não, os vivos hoje e sempre, vai se trocando, em rearranjos da memória (e do recriativo esquecimento). Artur Gomes troca poetas em seu corpo e, trocando com eles, entende que todos trocam entre si, a exemplo do diálogo poético de Clarice com Baudelaire. Mais ainda: o corpo do poeta troca com o corpo do poema e, consoante em “Poética”, a metalinguagem elabora um troca-troca de textos sob o mesmo título, pois o poema “Poética” se metamorfoseia em outros poemas: o tema “Poética” permanece, mas se trocando: o mesmo sendo diferente. A palavra “outro(s)” se sugere, enfim, ouro neste livro, e é nessa não indiferença ao outro, que o poético se faz ético e político. E nessa política da e pela diferença, a cidade do corpo se troca e vira o corpo da cidade. Assim, o poeta é – quando e enquanto coisa.
No meio de tantas referências e reverências, borrões (d)e assinaturas (como as de Mário de Andrade, Drummond, Torquato Neto, Rimbaud, Mallarmé, Tanussi Cardoso, Tchello d’Barros, Jiddu Saldanha, Ronaldo Werneck, Reinaldo Valinho Alvarez, Reinaldo Jardim, deuses e deusas gregas, orixás), o “anjo torto” de Artur Gomes não sopra no livro Manoel de Barros ou James Joyce, escritores também engenhosos e que se vale de muitos ilogismos ou neologismos. Todavia, O poeta enquanto coisa não deixa, na qualidade de título de livro, de repercutir o Retrato do artista quando coisa (de Barros) e o Retrato do artista quando jovem (de Joyce). Do mesmo modo, não havendo menção (ao menos, explícita e intencional), ao “Teatro Oficina” de José Celso Martinez Corrêa, a dimensão orgiástica da arte e a reunião – não menos sacro-promíscua – de mitos gregos e africanos, a assimilação pela cultura ocidental de outras culturas, aparece em Artur Gomes nesta, quiçá, Poesia Oficina. A relação gozosa e experimental com que a palavra se faz poema e se teatraliza faz de seus livros um grande laboratório da língua, do corpo e da cultura, com repercussões nitidamente políticas.
Se Pantanal é o corpo poético e o poema experimental, de aparente falta de lógica, lembrando o discurso infantil, no Manoel de Barros do Retrato do artista quando coisa, a urbe é o corpo prenhe de sexualidade e sensualidade em Artur Gomes, nos supostos ilogismos do discurso adulto que se vê fragmentado e devorado por Eros e Thanatos, e no qual a relação sujeito-objeto já não dá conta quando o humano se vê coisa (não mais agente ou paciente, voz ativa ou passiva: talvez, as duas ao mesmo tempo). Como no Pantanal de Barros, a linguagem de Gomes é lamacenta, cheia de líquidos e delírios: a seiva se expande e se intensifica com (ou se troca por) suor e sêmen. Lama, agora, é a cama: o mangue ou o pantaneiro é a cama de Artur onde dormem, acordam, sonham, gozam e ardem todos os corpos (humanos e não humanos) aqui já citados e dispostos nos lençóis, colchas e fronhas da página.
Por outro lado, temos na trajetória
literária de James Joyce, a intertextualidade com Ulisses de Homero. Artur
Gomes ouve o canto da sereia em sua cama, livro, divã, e talvez do
inconsciente escute a voz de um “artista quando jovem”, vinda de Joyce.
Nesta, a personagem protagonista Stephen Dedalus, aquele que será adiante o anti-herói de Ulysses, diz à sua mãe que não poderá seguir
a vocação de padre. Ele descobriu uma nova e grandiosa missão em sua vida: a de
criar uma nova e poderosa mitologia para o povo irlandês. O romance
autobiográfico de Joyce narra a infância de Dedalus (máscara de Joyce),
personagem que vai aparecer novamente em Ulysses.
A vida do pequeno Dedalus é marcada pela religiosidade da mãe. Ela quer que o
filho siga a carreira eclesiástica. Vários padres fazem parte da vida de
Dedalus e vão moldando sua consciência. O momento de virada na vida da
personagem principal se dá no momento em que ele escuta um horrível sermão
feito por um padre sobre o inferno que o deixa muito impressionado. Dedalus
passa a viver como um carola seguindo à risca todos os jejuns e mandamentos da
igreja católica. Nesse momento, ele até se sente como um futuro padre. Com a
sequência do romance, vemos o jovem Dedalus passar de uma fase religiosa para
uma de sensualidade. Sente-se cada vez mais obcecado com a ideia da confissão.
Ele então confessa a um padre todos os pecados sensuais que pratica. Abandona
definitivamente a convocação de ser padre e passa a se interessar por ideias
artísticas e estéticas. Dedalus abandona a carreira de padre mas não a fé.
por um poema
que desconcerte
entorte
desconforte
arrombe a porta
dos céus
da tua boca
arranhe
os dentes
da loba
arrebanhe os cordeiros
no pasto
e lhes ensine
a subverter
as ordens do pastor
assumo
o risco
não sou demo
nem corisco
eu sou cantor
Iansã é quem me lava
Oxossi é quem me leva
Ogum é quem me manda
Oxum é quem me guarda
eu sou o que invoca
o que provoca
e incorpora
desconcentra
desconforta
desconstrói
e desconcerta
eu sou o que interpreta
representa
o que inventa
e desafora
o Anjo Torto
graças a Zeus
a pedra e ao Machado de Xangô
a Capitã do Mato
Caipora
me xinga de poeta enganador
mal sabe ela
que eu sou da reza
que o homem que se preza
nunca se escraviza
com chicote de feitor
*Igor Fagundes é poeta, ensaísta, doutor em Poética e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Autor, dentre outros, de pensamento dança (2018) e Poética na incorporação (2016). Macumbança (2020)
O Homem Com
A Flor
Na Boca
:
Deus
Não Joga Dados
Deus não joga dados
Mas a
gente lança
tenta –
em arte
tudo se inventa
Eu tenho flores
com a
língua atravessada em cada canto da boca
EuGênio Mallarmè
Dê Livros
Dê Beijos
Dê Lírios
Dê Líricas
Bebo teus olhos atlânticos
e tua voz portuguesa
como quem bebe no Tejo
saudades de Lisboa
caminho com os teus passos
em direção ao poema do desassossego
Florbela Espanca Alberto Caieiro Fernando Pessoa
Baudelíricas Baudeléricas
o poema um beijo em tua boca bruna
tem um B entranhado entre as coxas a pele das amoras gemem quando venta forte
em tuas fendas do hoje comi duas nessa manhã incendiária quando vim da
cacomanga trouxe nos bolsos da calça remendada linha carretel cola de tribo
cerol bambu papel de pipa pique bandeira pique esconde jabuti preá da índia pés
de abóboras replantáveis o pé de abacate ainda não nasceu Isadora chegou ontem
30 de março numa tarde outono à sol aberto noite gelada frio na medula maya
ainda escreve sobre depressão no tempo falks may abriu as asas pra malásia e a
outra mora do outro lado em outra terra rio grande muito longe tenho sede
com os dentes cravados na memória
tontas
vezes me re-par-to mul-ti-pli-co em 7
alegria noves fora nada tudo é baudelérico federico me dizia leonardo fez 80
afonso 84 na rede somos 3 quando ele vem já somos 4 em temporais escrevo e
sangro como boi antes da morte muitos outros já se foram e nem gozaram em 69 se
eu me lembrar 64 não posso esquecer 68 era uma noite de maio peguei o trem pra
são cristóvão depois avião para brasília quando voltei no espelho dédala estava
dentro da tipografia
Em 1995 no Centro Cultural
Maria Antônia, na USP, em cia da minha querida amiga Silvia Passareli, assisti
uma encenação de Cacá de Carvalho, com texto de Pirandello que me pegou da
medula ao osso. A plateia era de 40 pessoas apenas e Cacá circulava entre nós
com a sua energia pulsante magnética. O texto era um fragmento de uma trilogia
que ele deu o nome de O Homem Com A Flor
Na Boca. E a ele, Cacá de Carvalho, dedicamos este livro.
Ofício de Poeta
franzir a noite
é o mesmo que bordar o dia
costuro o tempo
com linha de pescar moinhos de vento
entre o franzido e o bordado
escrevo um desenredo
e vou foto.grafando
filmando poesia
na solidão dos meus brinquedos
II
costuro arco-íris
com linhas de bordar
teus olhos d´água
III
pego na enxada diariamente
para capinar o quintal
da estação três cinco três
literalmente
não é metáfora
para lamber cio da terra
como na canção que Chico fez
IV
a poesia as vezes me vem da fala
outras de vozes absurdas
na travessia cantei pontos de Jongo
em Folias de Reis Festas Juninas
despachos de Macumba
para me defender dos capataz
nunca vivi porto seguro
na minha praia não tem cais
escrevo como falo aprendi com os ancestrais
V
com uma câmera nas mãos
um poema na cabeça
vamos filmar o poema
antes que desapareça
A folha de papel em branco sobrevoa a transparência diante
do espelho onde me espreitam dois grandes olhos
feito jabuticabas de um pomar que inda procuro a palavra escrita ainda
não dita de um desejo impuro e a folha branca de papel pousa em tuas mãos como
um pássaro não nascido ainda vindo do futuro.
carne
proibida 2
abusas no meu e-mail
no centro de gravidade
desse meu corpo elétrico
não me dissestes porque veio
acender a lâmpada
na metafísica dos poros
devoro teu corpo atlântico
com meu canino esquerdo
minha fome é quântica
como um barril de pólvora
com o pavio aceso
II
salsa alecrim alfavaca cebolinha
azeite limão hortelã vinagre
azeite com pimenta
quem resiste esse peixe temperado
que a poesia em mim inventra
vem lambe minha língua
que esse me(u)l sal te alimenta
tempestade/temporais
eu
sou avesso atravesso a cidade
com
o que me interessa
as
vezes sou sossego outras vezes tenho pressa
não
procuro o que não quero
me
abstenho no que faço
me
abstrato quando posso
me
concreto em cada passo
o
compasso é argamassa
o
absinto quando traço
uma
linha nunca reta
da
palavra em descompasso
se
sou torto não importa
em
cada porta risco um ponto
pra
revelar os meus destroços
no
alfabeto do desterro
a
carnadura dos meus ossos
Terra em Transe
em 1990 estava eu em Registro em mais uma transa literária que tinha sido iniciada em
Jardinópolis depois de uma passagem por Batatais, onde Hygia Calmon Ferreira, a
musa do poema Sagaranagens Fulinaímicas, me apresentou algumas estudantes do curso de letras na UNESP, em São José do
Rio Preto.
Em Batatais, quando desci do palco do Teatro Municipal, dois
lábios vermelhos carnudos encarnados e dois olhos azuis vidrados vibravam em
minha direção, era Cláudia, que ganhou beijo na boca e alguns anos depois Copacabana
consumou nossos desejos.
Em Registro era uma noite de Sarau no restaurante onde
jantávamos e eu ali absurdado com os
poetas soprando palavras ao vento, foi quando Mariana de Piracicaba, vindo a
mim feito ondas, me ofereceu saliva ardente numa pétala de rosa branca e espuma
vermelha de batom - delírios em sua língua de Vênus.
Desde então queimando em mar de fogo me Registro
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