do
som dessa palavra
nasce
uma outra palavra
fulinaimicamente
no
improviso do repente
do som dessa palavra nasce
uma
outra palavra
fulinaimicamente
A ARTE DOS ESPELHOS
O contrário
impresso
em mistério
espesso
reflete
o vácuo,
dote
do oco,
responde
à imagem,
expande a vertigem,
o inverso
converte
ao reverso
da arte
nova matriz
da sombra,
outra tez da obra,
cristal do corpo,
lúmen,
pericarpo
e sêmen.
Cleber Pacheco
tocar-te
por dentro
lentamente
calmamente
como quem morde
a maçã
na boca da serpente
e uiva
mastigando a carne
como sobremesa
Artur Kabrunco
https://fulinaimargem.blogspot.com/
Na próxima
encarnação
Não quero saber de barra
Replay de formiga não
Eu quero nascer cigarra
Nascer Tom Zé, Jamelão
Cantar, Violeta Parra
Zé Kéti, Duke Ellington
Com banda, orquestra e fanfarra
Itamar
Assumpção
Pátria A(r)mada - 2ª Edição Revisada e Ampliada (poesia)
Artur Gomes
Prêmio Oswald de Andrade
UBE-Rio – 2020
ê fome negra incessante
febre voraz gigante
ê terra de tanta cruz
onde se deu primeira missa
índio rima com carniça
no pasto pros urubus
oh! myBrazyl
ainda em alto mar
Cabral quando te viu
foi logo gritando:
terra à vista!
e de bandeja te entregando
pra união democrática ruralista.
por aqui nem só beleza
nesses dias de paupéria
nação de tanta riqueza
país de tanta miséria
-
“Artur
Gomes é daqueles poetas que não se contentam em grafar suas palavras apenas
nas páginas de um livro. Ele inscreve seus poemas no próprio corpo, na própria
voz. Misto de ator saltimbanco e trovador contemporâneo, seus versos ritmados e
musicais redobram a força quando saltam do papel para a garganta.”
do prefácio de Ademir Assunção
Artur Gomes - minibio
poeta.ator.produtor cultural vídeo
maker
2023 – Criou o projeto Campos
Veracidade que para a Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima onde atualmente
atua na coordenação cultural em Campos dos Goytacazes-RJ –
De 1975 a 2002 – Coordenou a Oficina de Artes Cênicas da ETFC – CEFET-Campos – IFF Instituto Federal Fluminense
Em 1993 – criou o projeto Mostra Visual de Poesia Brasileira – Mário de Andrade – 100 Anos – realizado pelo SESC-SP
Em 1995 – Criou o projeto Retalhos Imortais do SerAfim – Oswald de Andrade Nada Sabia de Mim – realizado pelo SESC-SP
De 1996 a 2016 – coordenou o Departamento de Audiovisual do Proyecto Sur Brasil – Bento Gonçalves-RS – realizando Mostras Cine.Vídeo na programação do Congresso Brasileiro de Poesia.
Em 1999 criou o FestCampos de Poesia Falada, projeto que é realizado até hoje pela Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima.
De 2014 a 2016 – Dirigiu Curso de Artes Cênicas no SESC – Campos
Em 2018 e 2019 lecionou no Curso Livre de Tetro da Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima.
Em 2018 participou como convidado do I Festival Transepoéticas no Museu Nacional de Brasília-DF
2021 - Curador do 1º Festival Cine Vídeo de Poesia Falada que é realizado na página Studio Fulinaíma Produção Audiovisual no facebook
https://www.facebook.com/studiofulinaima
2022 –Integrou a Mostra Bossa
Criativa – Arte de Toda Gente – realizada pela FUNARTE-Rio
Curador da Mostra Cine e Vídeo de Poesia Falada realizada pelo SESC Piracicaba –
Livros publicados:
Um Instante No meu Cérebro – 1973
Mutações Em
Pré-Juízo – 1975
Além Da Mesa Posta – 1977
Jesus Cristo Cortador De Cana –
1979
Boi-Pintadinho – 1980/1981
Carne Viva – 1984 – Antologia de Poesia Erótica
– Org. Olga Savary
Suor & Cio – 1985
Couro Cru & Carne Viva –
1987
20 Poemas Com Gosto de JardiNÓpolis & Uma Canção Com Sabor de Campos – 1990
Conkretude Versus ConkrEreções –
1994
CarNavalha Gumes – 1995
BraziLírica Pereira : A Traição das Metáforas – 2000
SagaraNagens Fulinaímicas –
2015
Juras Secretas – Editora Penalux 2018
Pátria A(r)mada – Editora Desconcertos –
2019 - Prêmio Oswald de Andrade – UBE_Rio- 2020
O Poeta Enquanto Coisa –
Editora Penalux - 2020
Pátria A(r)mada – 2ª Edição – 2022
O Homem Com A Flor Na Boca –
Editora Penalux – 2023
Em novembro de 2023 – recebeu homenagem do Sarau Gente de Palavra Paulistano que é realizado na Patuscada com coordenação dos Poetas Rubens Jardim e César Augusto de Carvalho
Capa Brochura - formato 14x21 cm - páginas 120
Claudinei Vieira – Desconcertos Editora
canções de frágil alvenaria (poesia, 2019)
Edson Tobinaga
moto perpetuum
diariamente
apago incêndios
enxugando gelo
Fausto
minha alma (de tão pequena)
não queima no inferno
queima
num turíbulo
variação
ato incidental:
simplesmente despiu-se,
trafegou no meio-fio
e, se não me engano,
uma ladainha o pegou de jeito.
mas sequer haveria de se considerar
morto
mesmo depois de enterrado:
ninguém morre assim
de uma hora pra outra
na boca dos homens
CANÇÕES DE FRÁGIL ALVENARIA
realiza uma impressionante, difícil e bela fusão de artes (das artes todas que
Tobinaga domina), podemos ‘ouvir’ suas palavras, ‘ouvir’ as cores brotando dos
poemas, reconhecemos o hai cai, o modernismo, um surrealismo, o concretismo,
todas harmoniosamente elaboradas e fundidas. Um livro para ser degustado e
apreciado com vagar, sem pressa. Como que ouvindo uma sinfonia. Como que
apreciando um quadro. Pois é quadro. É arte. É poesia plena.
EDSON TOBINAGA, compositor, arranjador e
instrumentista paulistano, premiado em 2000 no Concurso Nacional de Composição
Sinfonia Cultura/SBMC.
É também escritor e artista plástico.
Colaborou como ilustrador para o livro “Recinfância e outros poemas” de Risomar Fasanaro (Porto de Ideias, 2016) e das antologias “Uma Poesia Hoje - Antologia Brasil-Itália” (2018), “40 Poetas em SP” (2018) e “Encontro de Utopias” (2019), pela editora Patuá. Fez a arte da capa do livro “365”, de Stefani Costa, e a capa e ilustrações para “Manifesto do Fim do Mundo”, de Cacá Mendes, ambos publicados pela Desconcertos, editora esta que publicou seu livro de estreia: “Canções de Frágil Alvenaria” (2019).
Fundou, com o poeta e compositor Cacá Mendes, o grupo “Os Conversadores”, realizador do “Sarau dos Conversadores” e atuante em diversas áreas da cena cultural paulistana.
Capa Brochura - formato 16x23 cm -
páginas 112
Claudinei Vieira – Desconcertos Editora
Foi nessa idade que a poesia me veio buscar
Não sei de onde veio
Do inverno, de um rio
Não sei como nem quando
Não, não eram vozes
Não eram palavras
Nem silêncio
Mas da rua fui convocado
Dos galhos da noite
Abruptamente entre outros
Entre fogos violentos
Voltando sozinho
Lá estava eu sem rosto
E fui tocado.
Pablo Neruda
*
*
Arte: Anne-Christine-Roda-Tutt'Art
A candeia
'Não o via há tantos dias
Tinham dado Avé-Marias
Na capelinha da aldeia
Esperava por ele e não vinha
E como estava sózinha
Fui acender a candeia
Gemia o vento lá fora
Passa uma hora, outra hora
E ao romper da lua cheia
Ei-lo que vem, meigo e doce
E fosse lá p’lo que fosse
Tinha mais luz a candeia
Mil beijos, mil juramentos
E nesses loucos momentos
Toda a minh’alma se enleia
Quis mostrar-me o amor seu
E jurou que era só meu
P’la luz daquela candeia
Mas vi-lhe a boca a tremer
Eu mesma nem sei dizer
O que me veio à ideia
É que a verdade realça
Essa jura era tão falsa
Que se apagou a candeia."
Frederico de Brito
"Neste leito de ausência em que me esqueço
desperta o longo rio solitário:
se ele cresce de mim, se dele cresço,
mal sabe o coração desnecessário.
O rio corre e vai sem ter começo
nem foz, e o curso, que é constante, é vário.
Vai nas águas levando, involuntário,
luas onde me acordo e me adormeço.
Sobre o leito de sal, sou luz e gesso:
duplo espelho — o precário no precário.
Flore um lado de mim? No outro, ao contrário,
de silêncio em silêncio me apodreço.
Entre o que é rosa e lodo necessário,
passa um rio sem foz e sem começo."
[Poemas Portugueses]
FERREIRA GULLAR
Me levanté
temprano y anduve descalza
Por los corredores: bajé a los jardines
Y besé las plantas
Absorbí los vahos limpios de la tierra,
Tirada en la grama;
Me bañé en la fuente que verdes achiras
Circundan. Más tarde, mojados de agua
Peiné mis cabellos. Perfumé las manos
Con zumo oloroso de diamelas. Garzas
Quisquillosas, finas,
De mi falda hurtaron doradas migajas.
Luego puse traje de clarín más leve
Que la misma gasa.
De un salto ligero llevé hasta el vestíbulo
Mi sillón de paja.
Fijos en la verja mis ojos quedaron,
Fijos en la verja.
El reloj me dijo: diez de la mañana.
Adentro un sonido de loza y cristales:
Comedor en sombra; manos que aprestaban
Manteles.
Afuera, sol como no he visto
Sobre el mármol blanco de la escalinata.
Fijos en la verja siguieron mis ojos,
Fijos. Te esperaba.
Alfonsina Storni
Tradução: Judy
Judy
Acordei cedo e andei descalça.
Pelos corredores: Desci aos jardins
E beijei as plantas
Absorvi os vapores limpos da terra.
Deitada na grama;
Tomei banho na fonte que verdes
achiras
Circundam. Mais tarde, molhados de
água.
Penteei meus cabelos. Perfumei as
mãos
Com sumo de diamelas cheiroso. Garças
Quisquillosas, finas,
Da minha saia roubaram migalhas
douradas.
Depois coloquei um fato de clarim mais
leve.
Que a mesma gaze.
De um salto leve levei até o hall
Minha cadeira de palha.
Fixos no portão meus olhos ficaram,
Fixos no portão.
O relógio disse-me: 10 da manhã.
Dentro um som de louça e cristais:
Sala de jantar na sombra; mãos que
apertavam
Toalhas de mesa.
Lá fora, sol como eu não vi.
Sobre o mármore branco da escadaria.
Fixos no portão seguiram meus olhos.
Fixos. Estava à tua espera.
Alfonsina Storni
falo
Perscrutador feminino
Desbravador de odisseias oníricas
Majestoso e infiel
Devasso e paternal
Hércules das divindades
Imagem sagrada
Ora, penetra de frestas
Ora, ninho de trevas
Encolhido e arrebatador
Dono de favores
Gerador da natureza
Símbolo místico religioso
Ora, indolente
Ora, gigante desmensurado
Forte
Frágil
Impaciente e atrevido
Faz as vezes de rei x vagabundo
Força e fecundidade
Gerador de tesouros futuros
Tem em seu líquido branco
O sêmen da reconstrução
ad perpétum da humanidade
Nervoso, trêmulo
Tímido e feroz
Dono das orgias femininas
Se reconstrói e seduz
Martírio da infidelidade
Com sua anima arrebatadora
Se apossa de bens femininos
Traidor e assediador
Criador de gens e gêneros
Escravo da genitália feminina
Ditador e compulsivo
Se esvai em orifícios femininos
Luiza Silva Oliveira
O meu mundo não é como o dos outros,
quero demais, exijo demais;
Há em mim uma sede de infinito
uma angústia constante
que eu mesma não compreendo,
pois estou longe de ser uma pessoa;
Sou antes uma exaltada, com a alma
intensa, violenta, atormentada,
uma alma que não se sente bem onde está,
que sente saudades sei lá de quê!!
Florbela Espanca
Álvaro de CAMPOS
in "Livro de Versos. Fernando Pessoa
Que somos nós? Navios que passam um pelo outro na
noite,
Cada um a vida das linhas das vigias iluminadas
E cada um sabendo do outro só que há vida lá
dentro e mais nada.
Navios que se afastam ponteados de luz na treva,
Cada um indeciso diminuindo para cada lado do negro
Tudo mais é a noite calada e o frio que sobe do
mar.
Art by Juan Brufal
*
Nas veredas de sonho e residências surdas
os teus vencidos verões apressam-me com seus cantos
Uma cifra vigilante e sigilosa
vai pelos arrabaldes chamando-me, chamando-me
mas o que falta, diz-me, no diminuto cartão
onde estão o teu nome, a tua rua e o teu desvelo
se a cifra se mistura com as letras do sonho,
se somente estás onde já não te busco.
*
Arte: Daniel F. Gerhartz
Eu queria
cantar para dentro de alguém,
sentar-me junto de alguém e estar aí.
Eu queria embalar-te e cantar-te mansamente
e acompanhar-te ao despertares e ao adormeceres.
Queria ser o único na casa
a saber: a noite estava fria.
E queria escutar dentro e fora
de ti, do mundo, da floresta.
Os relógios chamam-se anunciando as horas
e vê-se o fundo o tempo.
E em baixo ainda passa um estranho
e acirra um cão desconhecido.
Depois regressa o silêncio. Os meus olhos,
muito abertos, pousaram em ti;
e prendem-te docemente e libertam-te
quando algo se move na escuridão.
Arte: Rodolfo Ledel - Tutt'Art
Fé no Evoé:
Confissões dionisíacas na poética e política de Artur Gomes
Igor Fagundes *
Depois das excitadas e excitantes Juras secretas, de 2018, o poeta e
artista multimídia Artur Gomes volta a tornar pública sua jura de amor e fidelidade
ao arcaico deus Dionísio em O poeta
enquanto coisa, de 2019, incorporando as ébrias forças de Baco sob
novos goles e ritos, tão poéticos quanto políticos, numa contemporaneidade que
avança em lama e vertigem e, assim, exige a potência do mítico da palavra
corpórea e originária. Comparece ao ethos deste livro a mesma embriaguez fulinaímica de sempre: a que toma,
mediante o delírio atento frente aos passos obtusos do ser e estar das gentes,
cada palavra como taça, vinho tinto e uma tinta capaz de, em contrapartida,
rogar lúcida a passagem dilacerada do humano pelas páginas turvas do mundo.
Que, em prefácio, ressoe agora-aqui a face mesma de assonâncias de Artur.
Que em pré-faces (a da melopeia,
a da fanopeia, a da logopeia) o poeta se apresente, por
assim dizer, multifacetado, contaminando-nos com os tempos de seu ritmo
venéreo. Que se capte, enfim, o próprio escape das imagens ímpares e afiadas
pelo gume de Gomes, repetindo-se – com outros nomes e aliterações
– seus deleitosos jogos de palavras em nossa fome de análise e anúncio:
incorporemos, nessa prosa de abertura, a música de seus trocadilhos, a
curvatura das paranomásias no retilíneo das linhas do livro: a que verte
vulva em verso, Afrodite em afro-ditos de orixás em orgias com Ártemis e
Hermes.
Que o veraz
poeta, para aquém do denominado moderno, para além do já clichê pós-moderno,
para quem dos rótulos e taxonomias previstas pelas literárias teorias,
atravessa o pós-pós de tudo e
mesmo o pó da historiografia. Artur Gomes se exibe, ao revés, pré-antigo
(tão dentro quanto fora do chronos)
na atualidade incorrigível de uma poesia dedicada à Gaia (lê-se na dedicatória:
“e a Terra/Mãe/Terra a musa eterna dos meus estados de
surtos dos meus estados de sítio dos meus estados de cio”). Enquanto bebe, no tempo cronológico (“tempo de
bestas”, “na caretice dos bostas”), as lutas e lutos de sua época e
século (“esse país que atravesso corpo devassado em grito na cara do
silêncio”), inebria-os e subverte-os no tempo imemorial da Terra para
fundar o Aion sem fundo do instante-em-transe da
experiência artística. Por isso, não basta citar, em cacoete analítico, os
tiques nervosos que convêm à crítica (mencionar modernismos influentes, a
geração beat, a poesia pop, a tropicália...) para entender
sua lírica. Nem seria preciso. Soaria até repetitivo elencar, neste preâmbulo,
as personagens caras a Gomes, forjando-o efeito do esbarro nelas todas, do
encontro com elas, das tramas e transas com obras e corpos do passado e
presente: o poeta já o faz e cumpre a coletânea como a dramaturgia de sua
errância pelo imaginário e pelo inconsciente, os quais derramam sobre o copo do
real e da consciência alter-egos confessos e inventados – tudo o que for
líquido nos vasos sanguíneos do poeta alcooliza o poemário com o híbrido
de fogo fátuo e frios fatos.
Artur Gomes – assinatura por vir, heteronímica, heteromórfica – assim apresenta em O poeta enquanto coisa suas juras não mais secretas, mas públicas, ainda púbicas, aos afetos que compõem e decompõem sua literaturavida. Seus versos são rascunhos, rasuras e ranhuras a passar a limpo os nexos e os nervos de sua fatura formal e estilística, deixando sobre a página tanto um rastro de unha quanto o esmalte dos escritos e vozes que em sua alma avultam e nos dedos instauram cutículas.
Tais intertextos e intratextos, ou ainda, tais hipertextos insaciáveis se disseminam pela obra na mesma proporção com que se concentram em cada poema, lado a lado ou embaralhados; falseando nos rebentos líricos as certidões de batismo e, em poligamia, proliferando as certidões de casamento com as leituras/releituras de livros, bem como com o folhear de rostos amigos, ou com o riso e risco do desconhecido, não obstante o postergar de comprovantes de residência, de pátrias de origem: cada gesto, um tanto Ulisses, desmente Ítacas, deslinda labirintos (do Minotauro?) ou mesmo fios (de Ariadne?), teatralizando ad infinitum as alteridades que servem como impressão digital provisória e polimórfica para alguma identidade fluida, fragmentada, ao rés da fantasia. Mas nada disso seria possível – nenhuma conversa com livros, nenhum sexo com as líricas de um outro e de uma outra – seria concreto sem a lascívia uma vez mais dionisíaca de um cérebro em gozo sináptico, em psiké-análise, em psiké-catálise, em psiké-catábase: esta que põe no divã do poeta as divas Oxum e Afrodite atravessadas, fosse a sala do analista também um templo pagão ou uma ilha de Lesbos, de modo que Artur construa entre sua cama e seu karma de vate uma Igreja imoral/amoral do Reino de Zeus. E dos muitos Eus que exilam hóstias e comungam com o jamais fixo e intransigente credo.
Esta, a sacralização do profano e do erótico, ou a profanação do sagrado enquanto humano, do poeta enquanto coisa (“o amor mesmo quando profano / tem muito mais de sagrado”): filho de um deus com uma mortal, Dionísio dança na recorrência da palavra “vinho” no livro, a exemplo dos versos: “aqui / a poesia pulsa / na veia / no vinho”; “por vinho tinto e poesia”; “ela tem sede de vinho / nas madrugadas dos bares”; “o vinho do tempo na boca”; “em nossas bocas tinto – vinho”; “beijo tua boca ainda suja / do vinho que sobrou”; “me consagro teu amante / pelos vinhedos de Baco / no ápice sagrado / da su-real pornofonia”. A embriaguez dos significantes e dos significados é a que tanto forja imagens insólitas (como a de um “céu de estanho” ou como em “ela mastiga meus ponteiros”) quanto a que costura melodias bem trabalhadas entre vogais, consoantes ( “entre paredes pedras facas de dois gumes / nos parreirais depois da lua), ratificando a inteligência verbal (a logopeia) de Artur Gomes dobrada em melopeia (música) e fanopeia (imagética). Visualidade provocada, a saber, não só pelas imagens significadas pelos significantes, mas visualidade ou imagem do próprio significante, o qual, dentro de si, dá à luz significâncias outras (“EuGênio Andrade”, “Afro-dite, “BolivariAndo”, “eletriCidade”), pois Artur Gomes – nesta “pornofonia” – é mestre na criação de neologismos (em tudo se vê uma “carNavalha”).
Não apenas o corpo do homem, da mulher, se sensualiza e se
sexualiza sob a força cósmica de Eros. É o poema mesmo que, em O poeta enquanto coisa, é corpo
sensualizado, sexualizado, da mesma maneira que a cidade, o mundo, os tempos e
o Tempo são Eros, vez que a palavra é pele e poro (duas palavras aliterantes e frequentes em Artur Gomes).
Nessa porosidade, o poeta se entende permeável a coisas e pessoas (a pessoas já
misturadas às coisas, a pessoas já coisas): “por entre poros entre pelos
/ minhas unhas tuas costas”. Também por isso, por essa poesia de tamanho
contato, fricção, a relação com a língua se confirma erotizada e – vale dizer –
tanto a língua física quanto a verbal, o que equivale a dizer que escrita e
oralidade se reencontram no poeta: a sofisticação da escritura literária não
perde (pelo contrário, potencializa) a dimensão primigênia do poeta como
cantor, como ator “na divina
língua de Baco”, a qual se
exalta mediante a recorrência também da palavra “boca” e da palavra “coxa”:
uma é a que beija, lambe, morde e degusta; outra é a beijada, a lambida, a
mordida, a degustada. Ambas em rima toante também entoam ritmos e ritos
profanos-sagrados:
o poema fala do teu corpo
como se o tocasse
o reconhecesse em cada verso
cada palavra que sai da boca
como um canto bíblico
com louvor profano
Nessa performance e performatividade lingual-linguística, todo signo cisma um erotismo entre o significante e o significado, sim, mas também entre página e palco, palco e praça, praça e povo, a babel dos povos e a babel das palavras: daí, tantos trocadilhos (troca-trocas, orgias, surubas...), como o da “flór do lótus” com a “flor do lácio”, o das “coxas” com as “costas”, o do “fauno” com a “flauta”, o da “alvorada” com o “alvoroço”, o da “antítese” com a “Antígona”. Eis a língua física, outrossim, a trocar com a verbal, mas sendo ao mesmo temo pelo verbal trocado, e vice-versa. Eis o poeta trocando com outros poetas ou sendo trocado por poetas outros, vestindo a roupa dos outros e tirando a sua roupa para ser outro: Federico Baudelaire, Gigi Mocidade, Bracutaia Silva, Federika Bezerra, Cristina Bezerra etc. O poeta, analista translógico da psique, troca com sua psicanalista. E o poeta se tenta analista de si mesmo, elevando o caos para a troca de seu nome Artur por timbres e assinaturas novos. Do mesmo modo, o nome dos poetas que existem, os que morreram e ainda não, os vivos hoje e sempre, vai se trocando, em rearranjos da memória (e do recriativo esquecimento). Artur Gomes troca poetas em seu corpo e, trocando com eles, entende que todos trocam entre si, a exemplo do diálogo poético de Clarice com Baudelaire. Mais ainda: o corpo do poeta troca com o corpo do poema e, consoante em “Poética”, a metalinguagem elabora um troca-troca de textos sob o mesmo título, pois o poema “Poética” se metamorfoseia em outros poemas: o tema “Poética” permanece, mas se trocando: o mesmo sendo diferente. A palavra “outro(s)” se sugere, enfim, ouro neste livro, e é nessa não indiferença ao outro, que o poético se faz ético e político. E nessa política da e pela diferença, a cidade do corpo se troca e vira o corpo da cidade. Assim, o poeta é – quando e enquanto coisa.
No meio de tantas referências e reverências, borrões (d)e assinaturas (como as de Mário de Andrade, Drummond, Torquato Neto, Rimbaud, Mallarmé, Tanussi Cardoso, Tchello d’Barros, Jiddu Saldanha, Ronaldo Werneck, Reinaldo Valinho Alvarez, Reinaldo Jardim, deuses e deusas gregas, orixás), o “anjo torto” de Artur Gomes não sopra no livro Manoel de Barros ou James Joyce, escritores também engenhosos e que se vale de muitos ilogismos ou neologismos. Todavia, O poeta enquanto coisa não deixa, na qualidade de título de livro, de repercutir o Retrato do artista quando coisa (de Barros) e o Retrato do artista quando jovem (de Joyce). Do mesmo modo, não havendo menção (ao menos, explícita e intencional), ao “Teatro Oficina” de José Celso Martinez Corrêa, a dimensão orgiástica da arte e a reunião – não menos sacro-promíscua – de mitos gregos e africanos, a assimilação pela cultura ocidental de outras culturas, aparece em Artur Gomes nesta, quiçá, Poesia Oficina. A relação gozosa e experimental com que a palavra se faz poema e se teatraliza faz de seus livros um grande laboratório da língua, do corpo e da cultura, com repercussões nitidamente políticas.
Se Pantanal é o corpo poético e o poema
experimental, de aparente falta de lógica, lembrando o discurso infantil, no
Manoel de Barros do Retrato do artista
quando coisa, a urbe é o corpo prenhe de sexualidade e sensualidade em Artur
Gomes, nos supostos ilogismos do discurso adulto que se vê fragmentado e
devorado por Eros e Thanatos, e no qual a relação sujeito-objeto já não dá conta quando o
humano se vê coisa (não mais agente
ou paciente, voz ativa ou passiva: talvez, as duas ao mesmo tempo). Como no
Pantanal de Barros, a linguagem de Gomes é lamacenta, cheia de líquidos
e delírios: a seiva se expande e se intensifica com (ou se troca por) suor e sêmen. Lama, agora, é a cama: o mangue ou o
pantaneiro é a cama de Artur onde dormem, acordam, sonham, gozam e ardem
todos os corpos (humanos e não humanos) aqui já citados e dispostos nos
lençóis, colchas e fronhas da página.
Por outro lado, temos na trajetória literária de James Joyce, a intertextualidade com Ulisses de Homero. Artur Gomes ouve o canto da sereia em sua cama, livro, divã, e talvez do inconsciente escute a voz de um “artista quando jovem”, vinda de Joyce. Nesta, a personagem protagonista Stephen Dedalus, aquele que será adiante o anti-herói de Ulysses, diz à sua mãe que não poderá seguir a vocação de padre. Ele descobriu uma nova e grandiosa missão em sua vida: a de criar uma nova e poderosa mitologia para o povo irlandês. O romance autobiográfico de Joyce narra a infância de Dedalus (máscara de Joyce), personagem que vai aparecer novamente em Ulysses. A vida do pequeno Dedalus é marcada pela religiosidade da mãe. Ela quer que o filho siga a carreira eclesiástica. Vários padres fazem parte da vida de Dedalus e vão moldando sua consciência. O momento de virada na vida da personagem principal se dá no momento em que ele escuta um horrível sermão feito por um padre sobre o inferno que o deixa muito impressionado. Dedalus passa a viver como um carola seguindo à risca todos os jejuns e mandamentos da igreja católica. Nesse momento, ele até se sente como um futuro padre. Com a sequência do romance, vemos o jovem Dedalus passar de uma fase religiosa para uma de sensualidade. Sente-se cada vez mais obcecado com a ideia da confissão. Ele então confessa a um padre todos os pecados sensuais que pratica. Abandona definitivamente a convocação de ser padre e passa a se interessar por ideias artísticas e estéticas. Dedalus abandona a carreira de padre mas não a fé.
Assim, Artur Gomes se obstina pela ideia de confissão,
mas de uma confissão dionisíaca. Primeiro, fazendo suas Juras Secretas, suas confidências sensuais, sexuais, eróticas,
fulinaímicas. Em suma, suas sagaranagens
(há algo de Joyce em Guimarães Rosa, ou vice-versa; no Rosa que há em Artur
Gomes, no sagarana dos
três). Agora, em O poeta enquanto
coisa, arriscando-se a abandonar todo credo político-religioso
paralisante, move-se – avesso ao dogmático – no sentido de dançar o
mitopoético, o dionisíaco. Daí, uma Igreja Universal do Reino Zeus faça
todo sentido na cosmogonia e teogonia de Artur Gomes. Em primeiro lugar,
como deboche diante de quaisquer fundamentalismos. Em segundo lugar, como
denúncia do que um Reino de Deus pode roubar do político o vigor do
poético, preferindo um louvor a Dionísio a um Deus que não sabe dançar, que não
sabe gozar, na liturgia de uma poesia que roga
por um poema
que desconcerte
entorte
desconforte
arrombe a porta
dos céus
da tua boca
arranhe
os dentes
da loba
arrebanhe os cordeiros
no pasto
e lhes ensine
a subverter
as ordens do pastor
assumo
o risco
não sou demo
nem corisco
eu sou cantor
Iansã é quem me lava
Oxossi é quem me leva
Ogum é quem me manda
Oxum é quem me guarda
eu sou o que
invoca
o que provoca
e incorpora
desconcentra
desconforta
desconstrói
e desconcerta
eu sou o que interpreta
representa
o que inventa
e desafora
o Anjo Torto
graças a Zeus
a pedra e ao Machado de Xangô
a Capitã do Mato
Caipora
me xinga de poeta enganador
mal sabe ela
que eu sou da reza
que o homem que se preza
nunca se escraviza
com chicote de feitor
A Mulher Que Come Livros - Última Cena – Federico Baudelaire – Eu sou Drummundo
Clarice
me deixou vazio, de tata paixão por G H secou os meus e-mails meus inteiros, me
deixou a ver navios, me jogou em São Francisco. Poesia é risco, o poeta é um
fingidor na obra de Fernando Pessoa, mas Itabapoana é pedra pássaro pedra que
voa. Não a mulher que come livros não é apena pelo desejo de ler, mas sim pela
fome de arroz, feijão, macarrão, carne, chocolate, e também pela sede de
sobreviver dessa barbárie para onde nos empurraram desde 2016.
era
uma vez um mangue e por onde andará Macunaíma na tua carn no teu sangue na
medula no teu osso por acaso ainda existe algum vestígio de Macunaíma na veia
do teu pescoço
guima meu mestre guima em mil perdões
eu vos peço por esta obra encarnada na carne cabra da peste da hygia ferreira
bem casta
aqui nas bandas do leste a fome de carne é madrasta
ave palavra profana cabala que vos fazia
veredas em mais sagaranas a morte em vidas severinas tal qual antropofagia
teu grande serTão vou cumer
nem joão cabral Severino nem virgulino de matraca nem meu padrinho de pia me ensinou usar faca ou da palavra
o fazer
a ferramenta que afino roubei do mestre
drummundo qyue o diabo giramundo é o narciso do meu ser
não. não bastaria a
poesia de algum bonde que despenca lua nos meus cílios num trapézio de pingentes
onde a lapa carregada de pivetes nos seus arcos ferindo a fria noite como um tapa
vai fazendo amor por entre os trilhos.
não. não bastaria a poesia cristalina se rasgando o corpo estão muitas meninas tentando a sorte em cada porta de metrô. e nós poetas desvendando palavrinhas vamos dançando uma vertigemno tal circo voador.
não. não bastaria todo riso pelas praças nem o amor que os pombos tecem pelos milhos com os pardais despedaçando nas vidraças e as mulheres cuidando dos seus filhos.
não bastaria delirar Copacabana e esta coisa de sal que não me engana a lua na carne navalhando um charme gay e uma cheiro de fêmea no ar devorador
aparentando realismo hiper-moderno,
num corpo de anjo que não foi meu deus quem fez
esse gosto de coisa do inferno como provar do amor no posto seis numa cósmica e profana poesia entre as pedras e o mar do Arpoador
uma mistura de feitiço e fantasia em altas ondas de mistérios que são vossos
não. não bastaria toda poesia que eu trago em minha alma um tanto porca, este postal com uma imagem meio Lorca: um bondinho aterrizando lá na Urca e esta cidade deitando água em meus destroços pois se o cristo redentor deixasse a pedra na certa nunca mais rezaria padre-nossos e na certa só faria poesia com os meus ossos.
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