quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

Múltiplas Poéticas

Você que agora acaba de abrir este livro, prepare-se bem: instale-se num lugar cômodo, esqueça outras tarefas, porque você não vai conseguir parar de ler até a última página.

Este livro faz o que, a meu ver, toda literatura deveria fazer: permite-nos viver, por algum tempo, outras vidas e tornar-nos capazes de compreendê-las um pouco melhor, talvez nos dotar de maior empatia por elas, esse sentimento hoje tão em falta em certas pessoas e tão necessário para que o mundo volte a ser um lugar minimamente vivível. Sim, o livro de Isabela de fato possibilita, com imensa fidelidade ao outro, essa saída de si para o encontro humanizante com o igual/diferente , com um preciso e rico uso das diferentes linguagens, ultrapassando, porém, as diferenças enquanto limites e chegando àquilo que faz de todas as vidas uma vida só. Nenhuma palavra de sobra neste livro, tudo o que aqui se diz é indispensável e você chegará ao fim com vontade de agradecer a Isabela em nome de todas as mulheres que, se assim continuarem a tomar em mãos as rédeas do mundo, vão salvar o nosso povo e a nossa vida.


Maria Valéria Rezende


Mãe solo e feminista(fatos que dizem mais de mim do que qualquer outra coisa que eu possa escrever aqui). Ainda assim, acrescento que sou formada em Publicidade e Propaganda, pós-graduada em Design Gráfico, produtora editorial e designer responsável pelos projetos do estúdio Fabricando Ideias Design Editorial.

Recentemente, descobri o quanto a escrita pode ser transformadora, passando a ser parte do meu dia a dia. Através da escrita consigo arrancar de dentro de mim tudo aquilo que me sufoca e angustia na vida cotidiana. Não necessariamente na minha vida, mas na vida de todos aqueles que me cercam, porque acredito na força do coletivo e em uma sociedade mais igualitária.

Fui premiada com menção honrosa e 4º lugar pelo conto Baú de Diálogos no VI Prêmio Literário Cidade Poesia (ASES – Bragança Paulista/2022) e participo da Coletânea Dias Distantes (Alpharrabio Edições /2021) com  o conto Por amor.

Espero que este Colateral, meu primeiro livro autoral, de alguma maneira encontre leitores que se identifiquem com o meu olhar sobre nossa sociedade,  em grande parte, adoecida e possa colaborar com futuras reflexões, Adoraria saber o que acharam após o término deste leitura. Quem tal me enviar um feedback sobre, no perfil @isatelesveras?


4

 Desde muito nova, sempre que eu fazia algo relacionado à casa, acompanhada de um largo sorriso, ouvia a frase: Já pode casar!

 Arrumou a cama, já pode casar! Fez a sobremesa, já pode casar! Lavou a louça, já pode casar! E por aí vai. Parecia que casar era o grande prêmio, e eu tinha que ser ótima nos afazeres domésticos, senão nenhum homem ia querer casar comigo.

 Cresci com essa ideia, de que se não casasse seria uma pessoa infeliz.

 Comecei a namorar e me senti a tal. Ele era o garoto mais cobiçado do colégio. Fazia parte do time de basquete. Dava pra sentir a inveja das meninas quando eu desfilava de mãos dadas com ele pelos corredores. Depois de oito anos de namoro, já não aguentava mais ouvir a mesma pergunta: O casamento é pra quando?

 Então, decidimos marcar a data. Fizemos uma festa linda e convidamos todo mundo do nosso convívio. Agora vai acabar a cobrança, pensei. Ledo engano, a cobrança agora era pior: Quando virão os filhos? Não seja egoísta, você não vai ser uma mulher de verdade se não tiver filhos! Quem vai cuidar de você na velhice? Pronto, se antes eu achava que só precisava casar para ser feliz, agora precisava também ter filhos.

 Eis que meu primeiro filho veio e realmente me encheu o coração de alegria. Se existe amor maior que este, desconheço. Mas com ele vieram noites maldormidas. Cansaço. Nunca mais tive tempo para academia, justo quando mais precisava, já que engordei vinte quilos na gravidez, dez dos quais nunca mais perdi. E junto com o filho veio mais uma cobrança: Não vão dar um irmão para ele?

 Meu marido sempre trabalhou muito, eu também, afinal é muito caro sustentar uma casa. Nos víamos à noite, nem sempre jantávamos juntos, já que cada um chegava num horário e, na maioria das vezes, com fome. Aos finais de semana íamos ao clube, para a praia, para o campo. Quase nunca em casa. Sempre rodeados de pessoas. Assim como minha mãe, assumi todo o serviço da casa, afinal quem entende de casa é mulher.

 Homem não nasceu pra isso.

 Com filho pequeno a rotina mudou, e assim passamos a perceber que o convívio diário não eram só flores. Adicionar ao trabalho a rotina de uma criança mais os afazeres de uma casa não parecia nada bom. Eu dormia pelos cantos, estava sempre cansada. Chegava do trabalho e ainda tinha que ajudar o filho com o dever de casa, me preocupar com a janta (criança não pode jantar qualquer coisinha, ou lanche, como eu fazia quando não era casada), nos finais de semana tinha que fazer faxina, e meu Deus, como criança faz sujeira, nunca mais vi minha casa limpa por mais de duas horas.

 As roupas, então, parece que não largam o encardido nunca. Não sei o que criança faz pra deixar tudo assim. Penso que meias deveriam ser descartáveis. O sexo ficou em último plano. As brigas começaram a surgir. Mas eu não podia terminar o casamento. Se meu casamento não desse certo a culpa com certeza seria minha, que não soube segurar o marido. O que os vizinhos iriam dizer? E meus avós, então! Nunca na minha família alguém se separou.

 Quando estava quase jogando a toalha e desistindo do casamento, veio o segundo filho. Agora que não posso mesmo me separar. Com dois filhos? Como vou dar conta disso sozinha? As agressões foram intensificadas. Sua gorda... se eu me separar de você ninguém vai te querer. Não sabe nem cuidar de uma casa. Não cuida dos filhos direito. Olha essa comida, que porcaria. Não sei nem como ainda tem emprego. Eu me sentia a pior mulher do mundo. E me sentia culpada, fracassada. Afinal, não conseguia dar conta de tudo. Vez ou outra, quando ele me procurava na cama pro sexo, eu, que já não sentia mais tesão por aquele homem, nem admiração, nada, deixava ele me penetrar e cumpria o meu papel de esposa. Depois me sentia mal, invadida, mas eu era casada, tinha que fazer isso.

 Foi então que veio o golpe fatal: a covid-19. Uma pandemia acompanhada de isolamento social era o que faltava para degringolar tudo. A família teria que conviver 24 horas por dia, sete dias por semana. O trabalho seria remoto. A escola seria on-line.

 As primeiras barreiras foram as práticas, do dia a dia. Na minha casa só havia um computador. Por sorte, eu e Marcelo pudemos trazer o notebook da empresa para casa. A internet, que era usada bem raramente, não aguentou uma semana, tivemos que trocar por uma melhor. O computador de casa ficou para os filhos usarem na aula a distância. Opa... eles são dois... e só havia um computador. Liga pra um, liga pra outro, até que minha irmã, que tinha um notebook só usado em viagens (já que era autônoma e não saía sem um computador a tiracolo), o emprestou para nós durante esse período crítico.

 Com filhos em casa, o home office virou uma tortura. Não sabia mais que desculpas dar para o meu chefe. Ajuda a conectar a aula on-line de um, faz o almoço, dá um lanche pro outro, separa a briga dos irmãos, limpa o vômito do menor, o maior precisa concluir o dever e grita dizendo que não tem papel na gaveta, corre para pegar mais em cima do armário, e, em meio a tudo, trabalho. Reuniões foram interrompidas por criança querendo algo, concentração zero, muito a fazer e nada feito direito.

 Meu marido precisava de silêncio para trabalhar, então se trancava o dia todo no quarto para que as crianças não o atrapalhassem, só saía para comer quando eu avisava que o almoço já estava na mesa.

 Vez ou outra sabia-se da sua existência, pois abria a porta e dava um grito: Porra! Faz esse menino ficar quieto! Estou trabalhando!

 Eu ia ao mercado, pois ele não sabia escolher as coisas, não sabia diferenciar escarola de rúcula, salsinha de coentro, banana-prata de nanica, nada... No meio das compras meu celular tocava: Vai demorar muito? As crianças não param e não estou conseguindo ler as notícias. Quando voltava das compras, tirava a máscara, trocava de roupa, limpava tudo com todo o cuidado para que as crianças não tocassem em nada antes de estar devidamente higienizado.

E foi numa dessas idas ao mercado que ao chegar em casa veio mais desaforo: Demorou demais! Estava fazendo o quê? Se demorar desse jeito, na próxima vez vai ficar na rua pra aprender.

 Olhei para trás e vi meu filho encolhido, com medo, ouvindo o pai gritar daquele jeito. Foi a gota-d’água. Como um filme, cenas de todas as agressões que vivi começaram a rodar na minha cabeça: Sua vaca! Olha só essa barriga horrorosa. Fui enganado quando casei. Sua porca! Olha o estado dessa cozinha! Só vive cansada! Não serve pra nada, nem pra transar! Vou gozar nessa sua cara feia!

 Como pude aguentar? Isso não está certo! Ele não pode me tratar assim! Tenho que tomar uma atitude! E eu, que sempre me consolei com frases como mas ele é meu marido, ele me ama, é o pai dos meus filhos, tenho que cuidar do meu casamento e coisas que nem de longe justificavam tantas agressões, finalmente enxerguei, pelo olhar do meu filho, que já era hora de dar um basta! Chega!, gritei. Por um instante ele parou e me olhou desconfiado, nunca tinha me visto reagir. Você não vai mais falar comigo assim! Exijo respeito!

 Me virou foi um tapa na cara e disse: Está aí o seu respeito! Fiquei muda, sem fala, com medo. Ele nunca havia me batido. Meu filho viu tudo e começou a chorar. Corri para ele, abracei e disse: Não chore. A mamãe está aqui, está bem? Olhei para aquele homem em pé na minha cozinha, com toda a fúria do mundo, e ele disse: Quer mais? Eu respondi: Você não faria isso. Foi então que ele pegou uma faca na gaveta. Olhei firme para meu filho e falei: Pega seu irmão e corre para o banheiro. Ele veio pra cima de mim e fez um corte de raspão no meu braço. Eu gritava pedindo socorro. Ele puxou meu cabelo, me jogou no chão, me chutando. Me xingava de vadia, cachorra. Dizia que eu não prestava pra nada. Que ia acabar comigo. Eu só pensava por que não tinha tomado uma atitude antes e que agora ia morrer e meus filhos iam ficar com aquele covarde.

 Consegui jogar um vaso em cima dele e, nesse minuto de distração, me juntei aos meus filhos no banheiro. Ele batia na porta, gritava. Eu tinha muito medo dele arrebentar aquela tranca. Mas tinha que deixar meus filhos calmos. Vamos cantar uma música e desenhar? Foi assim que tive a ideia, pegamos as toalhas, minha maquiagem, e começamos a escrever nelas com batom. Peguei uma delas, escrevi “SOS apto 22” e joguei pela janela, rezando para que alguém entendesse meu pedido de socorro. Uma vizinha viu e chamou a polícia, que em pouco tempo estava lá e prendeu meu marido em flagrante, enquanto ele gritava me chamando de puta e vagabunda.

 O isolamento social continua, o corre-corre continua, ainda durmo pelos cantos e ainda tenho que dar mil desculpas ao meu chefe. Liberdade é sinônimo de felicidade. O que os vizinhos vão pensar? O que minha família vai pensar? E meus avós? Foda-se.

 

Isabela Veras

 

Obs.: eu que quando conheci a Isabela, lá pelos idos de 1992, na minha primeira ida a Santo André-SP, um menina em sua plena adolescência -  e por alguns anos estivemos próximos, entre 1993 e 1997, quando tive o espaço Alpharrabio como o meu QG de produções, já nutria uma grande admiração por ela, agora então depois de ler o seu COLATERAL – posso dizer: Isabela obrigado: com amor afeto e carinho. Grande beijo 

Artur Gomes 


LISBOA AINDA

 

não percebi

essa distância

nas ruas da cidade

 

agora sei

que este poema

diz lua cheia

e nele está

o seu olhar

 

este lugar

onde encontrei

felicidade

é hoje o mesmo

a me trazer

tanta saudade

 

no templo

da lealdade

todo bem

não mais existe

 

fugiu

da minha vida

sem despedida

 

um fado amigo

só o que ficou

para consolar

 

vejo ainda

o rio-mar

imitação triste

de um olhar

 

José Antonio Gonçalves

Do livro – corpo em mim

PRIMATA – são Paulo – out/2019 


 

PALAVRAGEM

- A poesia não é a torneira desatada do sentimento. A arte é um modo específico de expressão e construção. Não existe arte sem racionalidade. Mesmo a arte convulsa tem um fio de racionalidade.

 - A potência poética existe em todos os animais racionais como uma caixa de surpresas guardada no porão, com maior ou menor grau de ocultamento e acesso. Pode estar lacrada, entreaberta, escancarada, mas está presente e pode ser acessada em qualquer tempo.

- A pedagogia poética consiste em estimular as pessoas a encontrarem e começarem a abrir essa caixa fazendo fiação de palavras com o que vem dela.

- Trilhando as entrelinhas do oculto, o poeta em viagem sensitiva cavalga sons que veste com palavras sem abc. Na catrúcia antacaliza astrumando esgomalia. É desse jeito ou mais ou menos assim. Nesse caso o músico ultrapassa o poeta, porque partituriza e entra no miolo, enquanto o poeta só pode palavrizar, ralando letra na casca do som.

- A arte revolve os doidos e doídos e sem eles não seria nada.

- O cantil do encanto se abastece nas fontes mais próximas.

- Vivo um quadrilátero amoroso com três figuras: D.Literavida, D.Reflexchão e o ancião-menino ou menino-ancião chamado Seu Humor. Moramos na mesma casa em cômodos separados que se comunicam. Há momentos em que chego mais perto e faço mais coisas com um ou com outro. Mantemos uma convivência tranquila e diariamente nos alimentamos juntos. Assim vamos levando vamos lavando vamos lavrando a vida.

- Escrevo o que do arco-íris em mim lateja em espiral.

- Eu faço literavida.

 

Marcelo Mário de Melo


"Pessoas como Nós"

Todas as pessoas sabem,
Todas as pessoas dizem,
Ou começamos a ir
Ou teremos que esperar

Enquanto as pessoas tentam
Nosso sol nunca se atrasa,
E dia após dia, noite após noite,
Pessoas como nós
Escolhem a melhor maneira
Para que você possa descansar na vida.

Pare o intervalo,
O tempo acabou,
E todas as pessoas permanecem
Como sombras no espelho do verão

 

Igor Calazans

Igor Calazans - Poeta, Jornalista e Produtor Cultural. Nascido em Niterói-RJ, é autor de 5 livros, além de participações destacadas em importantes antologias nacionais. Atualmente é editor do site RecantodoPoeta.com , coordenador do Movimento LaB Poético e curador do Sarau Epoché.


UM TOQUE

Não sou campanhia
pra você me tocar
e sair correndo.


Fique ao menos
alguns instantes
e tenha a coragem
de me ver sofrendo.

Jorge Mizael


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