quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

múltiplas poéticas

Pessoal intransferível,


“Escute, meu chapa: um poeta não se faz com versos. É o risco, é estar sempre a perigo sem medo, é inventar o perigo e estar sempre recriando dificuldades pelo menos maiores, é destruir a linguagem e explodir com ela. Nada nos bolsos e nas mãos. Sabendo: perigoso, divino, maravilhoso.

Poetar é simples, como dois e dois são quatro sei que a vida vale a pena etc. Difícil é não correr com os versos debaixo do braço. Difícil é não cortar o cabelo quando a barra pesa. Difícil, pra quem não é poeta, é não trair a sua poesia, que, pensando bem, não é nada, se você está sempre pronto a temer tudo; menos o ridículo de declamar versinhos sorridentes. E sair por aí, ainda por cima sorridente mestre de cerimônias, ? herdeiro? da poesia dos que levaram a coisa até o fim e continuam levando, graças a Deus.

E fique sabendo: quem não se arrisca não pode berrar. Citação: leve um homem e um boi ao matadouro. O que berrar mais na hora do perigo é o homem, nem que seja o boi. Adeusão


Torquato Neto.


Exterior

 

Wally Salomão

 

Por que a poesia tem que se confinar?

às paredes de dentro da vulva do poema?

Por que proibir à poesia

estourar os limites do grelo

da greta

da gruta

e se espraiar além da grade

do sol nascido quadrado?

Por que a poesia tem que se sustentar

de pé, cartesiana milícia enfileirada,

obediente filha da pauta?

Por que a poesia não pode ficar de quatro

e se agachar e se esgueirar

para gozar

— carpe diem! —

fora da zona da página?

Por que a poesia de rabo preso

sem poder se operar

e, operada,

polimórfica e perversa,

não pode travestir-se

com os clitóris e balangandãs da lira?



Iminência

 

este quase tocar

desnuda anseios

rasga e rompe

delicadamente

camada

em camada

deita amada

 

alcança

o átomo

que não morre

não envelhece

não se abala

transmuta

e permanece

 

escolha

cósmica

 

entre

meios

fios

pelos

seios

poros

pernas

deslizam

 

eros

hórus

 

céus!

 

em desordem

a ordem

orgástica

essência do despertar

 

Flávia Gomes



 torquato bashô serAfim
               não sei se é canibal
       ou serTão tupiniquim

Artur Kabrunco


A POESIA NÃO VALE NADA NESTE MUNDO QUE RASTEJA

É bem conhecida a frase de Theodor Adorno: “A crítica cultural encontra-se diante do último estágio da dialética entre cultura e barbárie: escrever um poema após Auschwitz é um ato bárbaro, e isso corrói até mesmo o conhecimento de por que hoje se tornou impossível escrever poemas”.

Ficou conhecida com diversas variantes: “como escrever poesia depois de Auschwitz?” Ou: “Impossível escrever poesia depois de Auschwitz”.

Parte dos humanos em todo o globo terrestre chocou-se profundamente quando tomou conhecimento em detalhes dos horrores dos campos de concentração nazistas.

Parte dos humanos em todo o globo terrestre pressionou, lutou, e conseguiu criar filtros para evitar novas barbáries desse tipo.

Mas as barbáries continuam. Com outros métodos.

Porém, o meu assunto aqui é poesia.

Se Adorno considerou “impossível escrever poemas” depois de Auschwitz, não viveu o bastante para constatar que a poesia não valeria absolutamente nada nos dias atuais.

Não vou apontar minha luneta para diferentes realidades em diferentes países. Vou focar no Brasil.

Vejamos: 99,9% do que se publica de poesia em livro no Brasil vem de pequenas (minúsculas editoras).

99,9% desses 99,9% saem com tiragens de 100 exemplares. Às vezes, menos.

Enfrentando dificuldades homéricas, num mercado predatório, como qualquer outro, os pequenos editores rezam para que os autores tragam amigos e familiares na noite de lançamento, em número suficiente para comprar ao menos 40% da tiragem (40 exemplares). Dessa forma, todo o trabalho, ao menos, se pagaria.

Aqui cabe uma pergunta: podemos chamar isso de “publicação”?

O termo “publicação” é muito claro; significa: “tornar público”.

Imprimir 100 exemplares, vender 40% (ou mesmo a totalidade) para amigos e familiares na “noite de autógrafos”, pode ser considerado tornar público um livro?

A resposta, para mim, é: Não.

Tornar público significa gerar algum debate público, ainda que mínimo, se considerarmos que poesia é algo minoritário no mercadão - embora a quantidade de poetas e de livros de poesia seja espantosa.

Que debate público temos em torno da poesia?

A resposta, para mim, é: Nenhum.

A dinâmica para tentar salvar algum escombro é bem conhecida: os pequenos editores inscrevem os livros publicados em concursos - basicamente três, “Oceanos”, “Jabuti” e “Biblioteca Nacional” -, na esperança de que se tornem, ao menos, finalistas, para, com isso, divulgar nas redes sociais.

Mas a verdade é que, com 99,9% dos 99,9%, não acontece absolutamente nada.

Os autores e autoras colocam os títulos de seus livros no currículo, mas a discussão pública é nenhuma.

Enganam-se os que pensam que sempre foi assim.

Não foi.

Os jornais tinham resenhistas competentes, abriam espaços para discussões, debates, polêmicas.

Havia páginas como Poesia Experiência, editada por Mário Faustino, no Jornal do Brasil (a long time ago). Havia as resenhas de rodapé no centenário Estadão.

Em anos mais recentes (digamos, umas três décadas atrás), o maior jornal do país, Folha de São Paulo, publicava poesia inédita nas páginas do suplemento Ilustríssima.

As grandes editoras, com infraestrutura para distribuir seus livros, lançavam muito mais títulos. De poesia.

Vou lembrar apenas duas coleções que causavam bastante impacto há... há... caramba, cerca de 40 anos: “Olho da Rua”, da gaúcha L&PM e “Cantadas Literárias”, da paulistana Brasiliense.

Não vou me alongar mais, nesse espaço inadequado para textos dessa natureza.

Finalizo com a frase lapidar, lá do título, na esperança de que me contestem com toda a firmeza: a poesia não tem importância nenhuma neste mundo hiper capitalista, que certamente levará a humanidade à ruína (em 50, 100, 200, 500 anos? - façam suas apostas).

O que tem importância são as benesses que os poetas conseguem conquistar fazendo um bom trabalho de mídia. Com alguma competência, podem conseguir uns 10 ou 15 mil seguidores no Instagram, o suficiente para latir como cachorro grande.

Até que passe a carrocinha.

                                       Ademir Assunção


eu tenho uma coleção de esquecimentos

e apenas duas mãos pra ver o mundo

meu dia passa inteiro num segundo

mas nada abafa a voz dos pensamentos

 

nem frontal e nem melatonina

eu tenho as saudades de um soldado

do que haveria de ser o meu passado

de tudo que escapou da minha sina

 

desculpas, culpas, lapsos de sinapses

impregnam minha corrente sanguínea

e sigo apassivando a carne ígnea

e aplainando os vértices dos ápices

 

eu sou o super-homem submisso

às rotas da rotina e ao tempo escasso

enquanto esqueço do próximo passo

anoto um outro novo compromisso

 

queria estar a sós comigo mesmo

e ter a eternidade toda em torno

desfalecer no fogo desse forno

até me desfazer como um torresmo

 

Arnaldo Antunes


Olenka
para Olga Savary

ainda que seja tarde
arde
ainda em mim
tua voz selvagem
magma sumidouro
terra mato ouro
tua carne russa
ensolarada de pará
índia tupiniquim
ameríndia brazilina
ainda pulsa
em cada pulso
dos meus braços
seus traços
eróticos
no carnaval de palavras
que engendrou cada poema

Artur Fulinaíma

www.arturkabrunco.blogsot.com


espelho

 

permaneço no espelho

olhando tua fotografia

vestida de preto e branco

a(r)mada de baton grená

pelos poros poesia

 

se fosse te definir

ainda nem sei o que diria

 

talvez começasse assim

:

olga savary

hilda hilst

alfonsina storn

 

cecília meirelles

ana cristina césar

clara bacarim

 

por onde comeria?

 

flávia gomes

talvez seja o nome

que no poema escreveria

 

EuGênio Mallarmè

https://personasarturianas.blogspot.com/


OS PANOS DE HILDA HILST

Em 31 de dezembro de 1952, Carlos Drummond de Andrade escreveu um poema-carta para Hilda Hilst, em retribuição a um telegrama que a jovem poeta havia encaminhado no final daquele ano. Aos 22, mulher linda e constante nos salões da alta burguesia paulista, Hilda Hilst já havia publicado dois livros de poemas. O poeta mineiro acabara de lançar Claro Enigma, ponto alto da sua maturidade, livro em que se encontra, por exemplo, "A Máquina do Mundo". Tinha 50 anos e confessava estar "mui perturbado" com a beleza e com a nudez de Hilda Hilst, apresentadas na sua imaginação pelas fotos e pelos vestidos assinados com que a moça desfilava. Talvez Drummond estivesse certo ao não fazer qualquer referência à literatura de Hilda Hilst - uma vez que ela mesma renegaria , em sua primeira reunião de poesia, em 1967, os três primeiros livros que publicara. Carlos Drummond de Andrade queria beijá-la, queria rodopiar com ela.


O poema-carta de 1952 só foi conhecido em 6 de abril de 1991, em matéria estampada na Folha de S Paulo. Carlos Drummond de Andrade já estava morto e Hilda Hilst, por sua vez, enveredara pela publicação de livros pornográficos para, segundo declarou tantas vezes, atrair a atenção dos leitores para a sua obra. Na matéria do jornal, ela declarou: "Este poema é principalmente fruto de sua alegria de me ver tão jovem, de seu desejo de juventude. (...) Drummond era uma pessoa muito doce e muito tímida - e eu era linda. (...) Naquela época, eu estava a toda!"


A matéria informa ainda que Hilda Hilst vivia nas colunas sociais e se vestia com Denner: "foi o único costureiro que eu senti que amava as mulheres". E concluiu: "Drummond me achava um bom poeta, mas com toda a minha exuberância, não me levava a sério".


Caem os panos.

 

Felipe Fortuna 



Carrego uma alma cansada

tão cansada que já não me pesa

Tenho cem anos e permaneço

sentada na varanda

olhando sem poesia e espera

o vento embalar as folhas das árvores

Tenho cem anos e respiro

quase sem precisar de ar

Tenho cem anos e um corpo

que por pouco ainda ocupa

algum espaço em algum tempo

que não sei qual é

Os ventos varreram minhas vaidades

as ondas levaram meus ímpetos

minha memória às vezes pisca luzes ainda

neste cérebro deteriorado

mas morre em mim mesma

despreocupada em se fazer existir

nesse mundo que desconheço

Dois palmos além do balançar dessas folhas

já não vivo ou imagino o universo

Carrego uma alma cansada

um corpo inexpressivo

Cem anos foram debulhados

da minha aura

Cem anos voaram

pelas minhas janelas

 

Clara Baccarin



*


      Será como chegar extenuado,

Mas chegar,

Depois de uma viagem

Que foi quase sempre angústia

De se debater num mar adversário

 

E então o inexprimível

De pisar em terra firme

E ainda ser capaz do passo distraído,

Essa glória de juventude

De se deixar levar

 

E será algo tão novo

Como se nunca tivesse existido

Nunca tivesse nem mesmo

Sido desejado –

 

Um caminhar estrangeiro

Por entre o orvalho e a névoa,

Um frescor de primeiro dia,

Um momento sem passado,

A chance de tocar um mundo novo

Como dois azuis se podem tocar

Sem pecado.

 

Mariana Ianelli



Wanda Monteiro

 

( )

A água vinha por todos os lados. Fora das águas também não se enxergava.
Eram suas cores negras que molhavam

( )

Houve então, a invasão das águas. Parecia que a noite inteira era líquida e se derramava por cima do barco. Pra mim, paresque ficamos balançando por perto dalguma margem.
Tanto o tempo não era tempo, como a noite não era noite e a mata não era mata.
A chuva, de tanto negra que era, tinha ficado meio-branca ou sem cor, paresque.
Foi aí que me deu um relâmpago que rasgou o mundo em dois pedaços.
Não sei se fogo entrou por dentro de mim ou se fui eu que entrei por dentro do fogo.
A luz me cegou de repente e me alumiou inteiro por dentro.
O branco da luz virou de novo paresque em todas as cores. Cores vivas, o senhor pensa.
E o negro de tanto negro virou de novo numa estranha claridade.
Claridade que paresque era mais de pensamento.
O silêncio era como a luz que a gente não via, mas que também não escutava.
E quanto mais eu remava, mais a água ficava da cor da noite, da cor da luz, da cor do céu e da cor do vento. Cismei logo que fosse as maranhas d'algum encante, cobra-grande, boiúna, yara ou encante só da própria água.
Tudo era espaço e tempo vago. Verde e vago. Verdevagomundo.

Foi aí que eu me perdi na mais pura claridade.
Pensei que eu estava bem no fundo.
Mas nesse mesmo instante, neste justo e exato momento, foi que a água e o céu se abriram e surgiu uma praia branca.
Todos os verdes e todas as cores se resumiram naquela praia.
E não tinha princípio nem fim. Era uma distância
Era paresque uma margem

Uma outra margem.

Excerto do romance A TERCEIRA MARGEM de Benedicto Monteiro
Lei mais no blog www.benedictomonteiro.blogspot.com.br 



 CRÔNICAS CRUZILIENSES (1.512)

ATÉ QUE ENFIM, POETAMIGO HUGO PONTES

“Poetamigo” é contração linguística de grande sensibilidade. Era muito utilizada pelo saudoso Zanoto – José de Souza Pinto – na sua coluna literária “Diversos Caminhos”, do jornal “Correio do Sul”, para homenagear os que lhe eram literariamente caros. Costumo usá-la também, para homenagear bons amigos poetas, como é Hugo Pontes.

Saindo do Correio agora. Algumas postagens a fazer, que ainda acredito nos estafetas. Receber missivas, na instituição mesmo, também. É que ando inquieto, viajo muito. Não poucas vezes, por tamanho, a correspondência não cabe na minha caixa de correios. Alegre, vi que uma delas era uma reclamada desde o início de janeiro, já que anunciada pelo remetente. Correspondência do poetamigo Hugo Pontes. Confesso que pensei em extravio, aguardava ansioso o anunciado envelope.

Hugo enviou-me cópia da “Segunda Viagem do Rio de Janeiro a Minas Gerais e São Paulo – 1822”, de Auguste de Saint-Hilaire. Gentileza típica do amigo, que vive a repassar informações e dados da história regional, tema que anima minhas “Crônicas Cruzilienses”.

Decepção só com os Correios, pois Hugo escreveu o cartão de encaminhamento em 11 de dezembro, postou no dia seguinte. Comprovei pelo carimbo de postagem. E só agora, quase dois meses depois, recebi a correspondência, que mostra que os serviços postais não são dos mais comprometidos. Ao menos não com o tempo. Afinal, os latinos ensinaram que “côngruo tempore et congruo loco”, ou desmistificado o latinório: “em tempo e lugar certos”. Mas chegou, até que enfim.

Tirado este desagrado, venceu a alegria de poder conversar com Hugo, escritor do qual privo a amizade há mais de trinta anos. Considero-o, na verdade, um irmão. Fraternidade advinda dos ares que também respiro. Ares da Passagem do Rio Verde dos Sagrados Corações de Jesus, Maria e José, amiudados como Três Corações, cidade onde o poeta nasceu. Ares da Paragem do Rio Verde de Nossa Senhora da Conceição, hoje Conceição do Rio Verde, onde o poeta viveu a infância.

Atualmente, e faz tempo, ele convive com novos ares e com as águas sulfurosas dos Poços de Caldas, província da qual ele é cidadão honorário e emérito. Lá ele casou-se, teve filhos, lecionou e escreveu. E escreve. Escreve muito, uma incansável e diversificada produção literária. Hugo Pontes é dos maiores nomes da “mail art”, poeta, historiador e biógrafo. Obrigado, amigo Hugo Pontes, pela gentileza. A obra encaminhada será de grande valia para as minhas pesquisas. Estimula, a sua generosidade, o nosso interesse pela história regional, além de acrescentar à sua gentileza nata.

Conheço o poeta Hugo Pontes há décadas. Ele foi parceiro constante, quando realizamos os Encontros de Escritores Mineiros. Acho que Hugo foi o único escritor mineiro (e nacional) a participar das 10 versões do evento, contribuindo com suas ricas palestras e exposições, sempre com sua fala mansa, quase acanhada. Trouxe-nos a experiência de participações em eventos internacionais e nacionais, através das quais ele construiu um legado que faz da sua bibliografia das mais expressivas e representativas da inquietude literária mineira.

Desde a década de 1960, Hugo Pontes é expoente do movimento que dinamizou o poema-processo no país, aproximando-se de grupos literários de Cataguases e Oliveira. Na década seguinte, dedicou-se ao poema visual, do qual é dos nomes mais representativos nacionalmente. Números expressivos, ele os detém, principalmente com a participação ativa em mais de 500 exposições nacionais e internacionais, do movimento que ele representa como papa da poesia visual e postal. Por isso e por eficiência, não poderiam os Correios ter cometido tamanha injustiça com o poeta. Afinal, ele é constante aliado da Arte Postal.

Com atraso do qual não sou culpado, obrigado, poetamigo. Sua consideração animou minha manhã, não a ponto de me efervescer para os festejos carnavalesca, mas a ponto de animar minha sensibilidade, que às vezes se amarfanha.

Aos esquecidos, lembramos as principais obras de Hugo Pontes:

- Defesa de tese (1997);

- Guimarães Rosa, Uma Leitura Mística(1998);

- 110 anos de Imprensa Poços-caldense (1999);

- O Barracão da Discórdia (2001);

- Léo Ferrer em Vida (2002);

- O Congado em Oliveira (2003);

- A Poesia das Águas - Retratos Escritos de Poços de Caldas (2005);

- O Teatro de Poços de Caldas (2006);

- Poemas Visuais e Poesias (2007);

- Minas em Pedaços: Os Movimentos Separatistas nas Gerais (2010);

- A Literatura Poços-caldense desde as Origens - 1872-1913 (2013).

O poeta diz, em defesa do poema visual, que “Ver é um processo natural, ler é um aprendizado formal.” A obra de Hugo Pontes ensina mais: que ver e ler administra a sensibilidade dos homens, ultimamente tão deseducada e indiferente.

(Cruzília, 1º de fevereiro de 2023)

 

Adolfo Mauricio Pereira

 

IMAGENS: Poeta Hugo Pontes e um dos seus poemas visuais. Jornal de Poesia. Reprodução.


Autocrítica de 2018 para ser lida em voz baixa.

Dou pasárgadas largas, dou pasárgadas curtas, mas não tem jeito; meus poemas são tropeços.

José Antônio Cavalcanti


ADMIRÁVEL MUNDO DAS PEQUENAS CRIATURAS

por Paulo Lima

Você devia ler este livro.

A recomendação veio da minha mulher, bióloga de profissão e devoção.

Olhei o livro de soslaio e pensei na pilha de outros livros que aguardam minha leitura.

Devo dizer que o único inseto que despertou meu interesse de leitor até hoje foi o que se apossou de Gregor Samsa. A metamorfose kafkiana me causou iguais reações de fascínio e repulsa. Nenhum leitor passa impune pela novela de Franz Kafka.

Notando meu minguado interesse, minha mulher reforçou a sugestão: você pode criar histórias para crianças a partir da vida desses insetos.

Insetos voejaram na minha imaginação. Peguei o livro: "Planeta dos insetos", que saiu pela Matrix, em tradução de Leonardo Pinto Silva. Sua autora, Anne Sverdrup-Thygeson, é uma professora de Biologia norueguesa.

As informações impressionantes que ela transmite com muita graça representam um primor de divulgação científica sem cientifiquês.

"Para cada ser humano vivo hoje na Terra existem mais de 200 milhões de insetos", começa explicando Anne Sverdrup.

200 milhões! Já imaginaram uma Revolta dos Insetos à maneira dos animais da fábula política de George Orwell?

Melhor não pensar, até porque toda essa "insetolândia" é composta em boa medida de habitantes benignos que não fariam mal a ninguém, muito menos a uma mosca, é claro. Os insetos, ensina Anne Sverdrup, têm a missão de fornecer alimentos, despoluir o meio ambiente e oferecer de mel a antibióticos.

As curiosidades sobre os insetos se multiplicam a cada página. É todo um admirável mundo novo dessas pequenas criaturas que se abre. E o livro mal começou a agitar suas asinhas. Avanço, maravilhado, na sua leitura.

Já sou capaz reconhecer a importância fundamental dos insetos na teia da vida. Sei, portanto, que as pessoas deveriam ter mais cuidado quando se predispõem a querer esmagar um desafeto "como a um inseto". Duzentos milhões deles, com suas importantes funções biológicas, as observa.


Jean-Michel Basquiat
Kings of Egypt II 1982
Material and technique

Oil on canvas
Height 183,5 cm
Width 183,5 cm
Depth 4 cm
Boijams Beuningen Museum


eco

olhou de soslaio para o espelho. o que era dele estava guardado.

                                         Mara Magaña

imagem: laborama


compreendo tuas passagens
as forças do hábito
e mudanças de humor repentinos

ainda caminhas nas ruas de São Paulo
com tuas distrações de criança
pelo bairro da Liberdade

no sombrio corredor do 13º andar
carregas o peso na mochila

a história da família
e um pacto mudo entre irmãos

todos levam o silencio do medo

emociono-me ao lembrar da tua coragem
depois de tudo encaras a vida de frente

(lembrei quando perdeu a sorte
e a paz de um céu absoluto)

só tua valentia há de tornar os dias mais tranquilos

agora festejamos a pura simplicidade que extasia
e por dentro tua essência ilumina

 Benette Bacellar - 2024
Photography by Eric Forey 


 

Luiz Rufino 

O que marca o nosso tempo? Essa é uma das perguntas que tenho feito e refeito durante alguns anos de estudo. Em textos, aulas, palestras e debates públicos tenho exposto essa pergunta e chamado parcerias do pensamento para adentrarmos essa mata. Certa vez, sentado na esteira ouvindo os mais velhos escutei que Exu vendo as injustiças causadas pelos homens parou o tempo para arrumar o mundo. Exu, que está em tudo e em tudo está, logo viu que os tempos são também as pessoas, seus fazeres, elos, memórias e as coisas que acontecem no mundo. Assim, resolveu não mais pará-lo, mas estar em todos os espaços fiscalizando as ações de cada ser no tempo. Os mais velhos também contam que Orunmilá-Ifá, memória, inteligência e sabedoria de Olodumare, guarda o ontem, o agora e o amanhã. Por ser a própria presença de Olodumare inscrita no tempo, Ifá não só conhece, mas implica todas as possibilidades de ser no tempo. Por isso, uma das grandes dádivas de Olodumare deixada para a criação é poder acessar Orunmilá via o oráculo de Ifá, pois ali se pode ter contato com o espírito que alcança o saber dos tempos e ouvir atentamente os conselhos que nos ajudam a nos refazer para além daquilo que enxergamos. Os velhos mestres da capoeiragem firmaram a máxima: "todo tempo não é um". O mestre e amigo Antônio Bispo dos Santos, que roçou afeto, cisma e netos dizia que os confluentes são íntimos e enredam amizade com o tempo e não com o horário. Hoje estamos assombrados pelo consumo e produção que nos vê como máquinas que correm contra o tempo. Assediados pelo excesso de "sim", que não negaceia e por isso não ginga, não fazemos contratempo, vamos tocando nossa vida aparelhados com equipamentos que medem passos, despertam para horários e organizam nossas agendas, mas ainda não são capazes de bordar experiências. Minha avó dizia: não se briga com o tempo. É possível termos relações com o tempo que não o perceba como uma coisa só? Sim. Entretanto, para alargar a noção de tempo caberá também nos sentirmos como algo maior do que somos. Talvez, seja esse o principal ensinamento do tempo quando se faz gira. Nos contar no toque suave que todo tempo não é um. @rufino.luiz7

#descolonização


CRITÉRIOS DA SAUDADE

Há uma saudade feito lâmina
que, além da alma,
também dilacera o corpo,
escancarando dores desconhecidas.

Outra saudade divisora de sentidos
é aquela que se pendura, aleatória, muitas vezes
constrangida,
entre fios tênues de um olhar perdido
à procura dos já findos:
um alguém, um desejo, uma sede, um resquício.

Há aquelas bem mais urgentes,
necessárias, mas incoerentes,
nas ranhuras que se desenham - repentinas - entre as unhas
a demarcar terrenos improváveis ao desmantelo do coração.

Ainda suplicam saudades outras
- bem distantes -
teimosas, itinerantes, quase peregrinas,
que se vão como em fases,
que ora trazem de volta alguma de suas faces,
ora fogem sorrateiras nas lonjuras escuras do inconsciente.

De todas elas
tenho afeição primeira
por uma saudade ainda sem classificação:
gosto mesmo da saudade que se derrama
entre uma de mim que já fui
e aquela que sonhei.

(Nic Cardeal/2022)


Carta de Li Po à Lua

Contemplo a imagem sobre o lago, só um reflexo. Iludo-me dizendo a mim mesmo "é ela, a própria, alcancei-a". Quem diria.
Na noite seguinte retorno ao mundo líquido, saudoso de sua luminescência e, inacessível, lá do alto, assombra-me o seu fantasma enquanto insinua "és tu o verdadeiro espectro."
Silente, ao recolhimento torno, consciente de que só em sonho tocarei seu âmago de precioso jade."

 

Cleber Pacheco
(Livro publicado em 2011).



Retirei estas pedrinhas que vieram incrustadas no solado emborrachado dos sapatos usados na viagem ao Piauí, coloquei-as num minúsculo envelope de plástico transparente. Uma etiqueta as identifica. Estavam no meio do caminho e eu não as percebi. Agora, sob minhas vistas cansadas, permanecerão a lembrar, a lembrar...

 Dalila Teles Veras

 — em Santo André, São Paulo.


 

#PAPOPRALUA

Como disse Drummond:
Quem teve a ideia de cortar o tempo em fatias,
a que se deu o nome de ano, foi um individuo genial.
Industrializou a esperança, fazendo-a funcionar no limite da exaustão.
Doze meses dão para qualquer ser humano se cansar e entregar os pontos.
Aí entra o milagre da renovação
e tudo começa outra vez, com outro número
e outra vontade de acreditar que daqui para diante tudo vai ser diferente.
Para você, desejo o sonho realizado,
o amor esperado,
a esperança renovada.
Para você, desejo todas as cores desta vida,
todas as alegrias que puder sorrir,
todas as músicas que puder emocionar.
Para você, neste novo ano,
desejo que os amigos sejam mais cúmplices,
que sua família seja mais unida,
que sua vida seja mais bem vivida.
Gostaria de lhe desejar tantas coisas...
Mas nada seria suficiente...
Então desejo apenas que você tenha muitos desejos,
desejos grandes.
E que eles possam mover você a cada minuto
ao rumo da sua felicidade
E que venha 2024!

 

Décio Sousa


P. Klee


Caderno rosa

 

Você sabe

por que vive

a língua morta?

 

Eu quando tive

a casa certa ela era torta,

meu amor.

 

E dentro de casa,

do que corre o corredor?

 

E fora dela,

por que duas asas

ao beija-flor?

 

Eu inteiro

já fui no meio

um balão de sonhos,

meu amor.

 

Hoje nem cheiro,

nem veio,

nem vou.

 

Você sabe

qual melhor dia

para viver?

 

Não vale ontem

nem amanhã,

fica fácil de escolher.

 

No caderno rosa

que mata e me consome,

tinha uma flor.

 

Nem verso nem prosa,

nele só havia o seu nome,

meu amor.

 

Você sabe

por que vemos

o que não mais existe?

 

E por que

a vida fica menos triste

vendo o sol se por?

 

Juro, quando eu tive

a lua cheia era crescente

o meu amor.

 

(André Bolívar)


menina dos brincos de pérola

José César Castro

transpiração gráfica aos olhos de Wermmer

Mãe

Um dia,
minha mãe me falou:
- Você não é minha filha.
Você deve ter nascido,
de uma chocadeira.

Então...
Criei asas e voei.
Virei Águia.
Fiz meu próprio ninho,
meu destino.

 

Rosana Venturini) 



Além de mim

Quero apenas

Além de mim, quero apenas

essa tranqüilidade de campos de flores

e este gesto impreciso

recompondo a infância.

 

Além de mim

- e entre mim e meu deserto -

quero apenas silêncio,

cúmplice absoluto de meu verso,

tecendo a teia do vestígio

com cuidado de aranha.

 

 Olga Savary, em "Repertório selvagem: Obra Reunida". Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional; MultiMais Edições; Universidade de Mogi das Cruzes, 1998.


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