Pessoal intransferível,
“Escute, meu chapa: um poeta não se
faz com versos. É o risco, é estar sempre a perigo sem medo, é inventar o
perigo e estar sempre recriando dificuldades pelo menos maiores, é destruir a
linguagem e explodir com ela. Nada nos bolsos e nas mãos. Sabendo: perigoso,
divino, maravilhoso.
Poetar é simples, como dois e dois
são quatro sei que a vida vale a pena etc. Difícil é não correr com os versos
debaixo do braço. Difícil é não cortar o cabelo quando a barra pesa. Difícil,
pra quem não é poeta, é não trair a sua poesia, que, pensando bem, não é nada,
se você está sempre pronto a temer tudo; menos o ridículo de declamar versinhos
sorridentes. E sair por aí, ainda por cima sorridente mestre de cerimônias, ?
herdeiro? da poesia dos que levaram a coisa até o fim e continuam levando,
graças a Deus.
E fique sabendo: quem não se arrisca
não pode berrar. Citação: leve um homem e um boi ao matadouro. O que berrar
mais na hora do perigo é o homem, nem que seja o boi. Adeusão
Torquato Neto.
Exterior
Wally Salomão
Por que a poesia tem que se confinar?
às paredes de dentro da vulva do
poema?
Por que proibir à poesia
estourar os limites do grelo
da greta
da gruta
e se espraiar além da grade
do sol nascido quadrado?
Por que a poesia tem que se sustentar
de pé, cartesiana milícia
enfileirada,
obediente filha da pauta?
Por que a poesia não pode ficar de
quatro
e se agachar e se esgueirar
para gozar
— carpe diem! —
fora da zona da página?
Por que a poesia de rabo preso
sem poder se operar
e, operada,
polimórfica e perversa,
não pode travestir-se
com os clitóris e balangandãs da
lira?
Iminência
este quase tocar
desnuda anseios
rasga e rompe
delicadamente
camada
em camada
deita amada
alcança
o átomo
que não morre
não envelhece
não se abala
transmuta
e permanece
escolha
cósmica
entre
meios
fios
pelos
seios
poros
pernas
deslizam
eros
hórus
céus!
em desordem
a ordem
orgástica
essência do despertar
Flávia Gomes
torquato bashô serAfim
não sei se é canibal
ou
serTão tupiniquim
A POESIA NÃO VALE NADA NESTE MUNDO
QUE RASTEJA
É bem conhecida a frase de Theodor Adorno: “A
crítica cultural encontra-se diante do último estágio da dialética entre cultura
e barbárie: escrever um poema após Auschwitz é um ato bárbaro, e isso corrói
até mesmo o conhecimento de por que hoje se tornou impossível escrever poemas”.
Ficou conhecida com diversas variantes: “como
escrever poesia depois de Auschwitz?” Ou: “Impossível escrever poesia depois de
Auschwitz”.
Parte dos humanos em todo o globo terrestre
chocou-se profundamente quando tomou conhecimento em detalhes dos horrores dos
campos de concentração nazistas.
Parte dos humanos em todo o globo terrestre
pressionou, lutou, e conseguiu criar filtros para evitar novas barbáries desse
tipo.
Mas as barbáries continuam. Com outros métodos.
Porém, o meu assunto aqui é poesia.
Se Adorno considerou “impossível escrever poemas”
depois de Auschwitz, não viveu o bastante para constatar que a poesia não
valeria absolutamente nada nos dias atuais.
Não vou apontar minha luneta para diferentes
realidades em diferentes países. Vou focar no Brasil.
Vejamos: 99,9% do que se publica de poesia em
livro no Brasil vem de pequenas (minúsculas editoras).
99,9% desses 99,9% saem com tiragens de 100
exemplares. Às vezes, menos.
Enfrentando dificuldades homéricas, num mercado
predatório, como qualquer outro, os pequenos editores rezam para que os autores
tragam amigos e familiares na noite de lançamento, em número suficiente para
comprar ao menos 40% da tiragem (40 exemplares). Dessa forma, todo o trabalho,
ao menos, se pagaria.
Aqui cabe uma pergunta: podemos chamar isso de
“publicação”?
O termo “publicação” é muito claro; significa: “tornar
público”.
Imprimir 100 exemplares, vender 40% (ou mesmo a
totalidade) para amigos e familiares na “noite de autógrafos”, pode ser
considerado tornar público um livro?
A resposta, para mim, é: Não.
Tornar público significa gerar algum debate público,
ainda que mínimo, se considerarmos que poesia é algo minoritário no mercadão -
embora a quantidade de poetas e de livros de poesia seja espantosa.
Que debate público temos em torno da poesia?
A resposta, para mim, é: Nenhum.
A dinâmica para tentar salvar algum escombro é bem
conhecida: os pequenos editores inscrevem os livros publicados em concursos -
basicamente três, “Oceanos”, “Jabuti” e “Biblioteca Nacional” -, na esperança
de que se tornem, ao menos, finalistas, para, com isso, divulgar nas redes
sociais.
Mas a verdade é que, com 99,9% dos 99,9%, não
acontece absolutamente nada.
Os autores e autoras colocam os títulos de seus
livros no currículo, mas a discussão pública é nenhuma.
Enganam-se os que pensam que sempre foi assim.
Não foi.
Os jornais tinham resenhistas competentes, abriam
espaços para discussões, debates, polêmicas.
Havia páginas como Poesia Experiência, editada por
Mário Faustino, no Jornal do Brasil (a long time ago). Havia as resenhas de
rodapé no centenário Estadão.
Em anos mais recentes (digamos, umas três décadas
atrás), o maior jornal do país, Folha de São Paulo, publicava poesia inédita
nas páginas do suplemento Ilustríssima.
As grandes editoras, com infraestrutura para
distribuir seus livros, lançavam muito mais títulos. De poesia.
Vou lembrar apenas duas coleções que causavam
bastante impacto há... há... caramba, cerca de 40 anos: “Olho da Rua”, da
gaúcha L&PM e “Cantadas Literárias”, da paulistana Brasiliense.
Não vou me alongar mais, nesse espaço inadequado para
textos dessa natureza.
Finalizo com a frase lapidar, lá do título, na
esperança de que me contestem com toda a firmeza: a poesia não tem importância
nenhuma neste mundo hiper capitalista, que certamente levará a humanidade à
ruína (em 50, 100, 200, 500 anos? - façam suas apostas).
O que tem importância são as benesses que os
poetas conseguem conquistar fazendo um bom trabalho de mídia. Com alguma
competência, podem conseguir uns 10 ou 15 mil seguidores no Instagram, o
suficiente para latir como cachorro grande.
Até que passe a carrocinha.
Ademir Assunção
eu tenho uma coleção de esquecimentos
e apenas duas mãos pra ver o mundo
meu dia passa inteiro num segundo
mas nada abafa a voz dos pensamentos
nem frontal e nem melatonina
eu tenho as saudades de um soldado
do que haveria de ser o meu passado
de tudo que escapou da minha sina
desculpas, culpas, lapsos de sinapses
impregnam minha corrente sanguínea
e sigo apassivando a carne ígnea
e aplainando os vértices dos ápices
eu sou o super-homem submisso
às rotas da rotina e ao tempo escasso
enquanto esqueço do próximo passo
anoto um outro novo compromisso
queria estar a sós comigo mesmo
e ter a eternidade toda em torno
desfalecer no fogo desse forno
até me desfazer como um torresmo
Arnaldo Antunes
ainda que seja tarde
arde
ainda em mim
tua voz selvagem
magma sumidouro
terra mato ouro
tua carne russa
ensolarada de pará
índia tupiniquim
ameríndia brazilina
ainda pulsa
em cada pulso
dos meus braços
seus traços
eróticos
no carnaval de palavras
que engendrou cada poema
espelho
permaneço no espelho
olhando tua fotografia
vestida de preto e branco
a(r)mada de baton grená
pelos poros poesia
se fosse te definir
ainda nem sei o que diria
talvez começasse assim
:
olga savary
hilda hilst
alfonsina storn
cecília meirelles
ana cristina césar
clara bacarim
por onde comeria?
flávia gomes
talvez seja o nome
que no poema escreveria
EuGênio
Mallarmè
https://personasarturianas.blogspot.com/
OS PANOS DE
HILDA HILST
Em 31 de dezembro de 1952, Carlos Drummond de Andrade escreveu um poema-carta para Hilda Hilst, em retribuição a um telegrama que a jovem poeta havia encaminhado no final daquele ano. Aos 22, mulher linda e constante nos salões da alta burguesia paulista, Hilda Hilst já havia publicado dois livros de poemas. O poeta mineiro acabara de lançar Claro Enigma, ponto alto da sua maturidade, livro em que se encontra, por exemplo, "A Máquina do Mundo". Tinha 50 anos e confessava estar "mui perturbado" com a beleza e com a nudez de Hilda Hilst, apresentadas na sua imaginação pelas fotos e pelos vestidos assinados com que a moça desfilava. Talvez Drummond estivesse certo ao não fazer qualquer referência à literatura de Hilda Hilst - uma vez que ela mesma renegaria , em sua primeira reunião de poesia, em 1967, os três primeiros livros que publicara. Carlos Drummond de Andrade queria beijá-la, queria rodopiar com ela.
O poema-carta de 1952 só foi conhecido em 6 de
abril de 1991, em matéria estampada na Folha de S Paulo. Carlos Drummond de
Andrade já estava morto e Hilda Hilst, por sua vez, enveredara pela publicação
de livros pornográficos para, segundo declarou tantas vezes, atrair a atenção
dos leitores para a sua obra. Na matéria do jornal, ela declarou: "Este
poema é principalmente fruto de sua alegria de me ver tão jovem, de seu desejo
de juventude. (...) Drummond era uma pessoa muito doce e muito tímida - e eu
era linda. (...) Naquela época, eu estava a toda!"
A matéria informa ainda que Hilda Hilst vivia nas
colunas sociais e se vestia com Denner: "foi o único costureiro que eu
senti que amava as mulheres". E concluiu: "Drummond me achava um bom
poeta, mas com toda a minha exuberância, não me levava a sério".
Caem os panos.
Felipe Fortuna
Carrego uma alma cansada
tão cansada que já não me pesa
Tenho cem anos e permaneço
sentada na varanda
olhando sem poesia e espera
o vento embalar as folhas das árvores
Tenho cem anos e respiro
quase sem precisar de ar
Tenho cem anos e um corpo
que por pouco ainda ocupa
algum espaço em algum tempo
que não sei qual é
Os ventos varreram minhas vaidades
as ondas levaram meus ímpetos
minha memória às vezes pisca luzes
ainda
neste cérebro deteriorado
mas morre em mim mesma
despreocupada em se fazer existir
nesse mundo que desconheço
Dois palmos além do balançar dessas
folhas
já não vivo ou imagino o universo
Carrego uma alma cansada
um corpo inexpressivo
Cem anos foram debulhados
da minha aura
Cem anos voaram
pelas minhas janelas
Será como chegar extenuado,
Mas chegar,
Depois de uma viagem
Que foi quase sempre angústia
De se debater num mar adversário
E então o inexprimível
De pisar em terra firme
E ainda ser capaz do passo distraído,
Essa glória de juventude
De se deixar levar
E será algo tão novo
Como se nunca tivesse existido
Nunca tivesse nem mesmo
Sido desejado –
Um caminhar estrangeiro
Por entre o orvalho e a névoa,
Um frescor de primeiro dia,
Um momento sem passado,
A chance de tocar um mundo novo
Como dois azuis se podem tocar
Sem pecado.
Wanda
Monteiro
( )
A água vinha por todos os lados. Fora das águas
também não se enxergava.
Eram suas cores negras que molhavam
( )
Houve então, a invasão das águas. Parecia que a
noite inteira era líquida e se derramava por cima do barco. Pra mim, paresque
ficamos balançando por perto dalguma margem.
Tanto o tempo não era tempo, como a noite não era
noite e a mata não era mata.
A chuva, de tanto negra que era, tinha ficado
meio-branca ou sem cor, paresque.
Foi aí que me deu um relâmpago que rasgou o mundo
em dois pedaços.
Não sei se fogo entrou por dentro de mim ou se fui
eu que entrei por dentro do fogo.
A luz me cegou de repente e me alumiou inteiro por
dentro.
O branco da luz virou de novo paresque em todas as
cores. Cores vivas, o senhor pensa.
E o negro de tanto negro virou de novo numa
estranha claridade.
Claridade que paresque era mais de pensamento.
O silêncio era como a luz que a gente não via, mas
que também não escutava.
E quanto mais eu remava, mais a água ficava da cor
da noite, da cor da luz, da cor do céu e da cor do vento. Cismei logo que fosse
as maranhas d'algum encante, cobra-grande, boiúna, yara ou encante só da
própria água.
Tudo era espaço e tempo vago. Verde e vago.
Verdevagomundo.
Foi aí que eu me perdi na mais pura claridade.
Pensei que eu estava bem no fundo.
Mas nesse mesmo instante, neste justo e exato
momento, foi que a água e o céu se abriram e surgiu uma praia branca.
Todos os verdes e todas as cores se resumiram
naquela praia.
E não tinha princípio nem fim. Era uma distância
Era paresque uma margem
Uma outra margem.
Excerto do romance A TERCEIRA MARGEM de Benedicto Monteiro
Lei mais no blog www.benedictomonteiro.blogspot.com.br
CRÔNICAS CRUZILIENSES (1.512)
ATÉ QUE ENFIM, POETAMIGO HUGO PONTES
“Poetamigo” é contração linguística
de grande sensibilidade. Era muito utilizada pelo saudoso Zanoto – José de
Souza Pinto – na sua coluna literária “Diversos Caminhos”, do jornal “Correio
do Sul”, para homenagear os que lhe eram literariamente caros. Costumo usá-la
também, para homenagear bons amigos poetas, como é Hugo Pontes.
Saindo do Correio agora. Algumas
postagens a fazer, que ainda acredito nos estafetas. Receber missivas, na
instituição mesmo, também. É que ando inquieto, viajo muito. Não poucas vezes,
por tamanho, a correspondência não cabe na minha caixa de correios. Alegre, vi
que uma delas era uma reclamada desde o início de janeiro, já que anunciada
pelo remetente. Correspondência do poetamigo Hugo Pontes. Confesso que pensei
em extravio, aguardava ansioso o anunciado envelope.
Hugo enviou-me cópia da “Segunda
Viagem do Rio de Janeiro a Minas Gerais e São Paulo – 1822”, de Auguste de
Saint-Hilaire. Gentileza típica do amigo, que vive a repassar informações e
dados da história regional, tema que anima minhas “Crônicas Cruzilienses”.
Decepção só com os Correios, pois
Hugo escreveu o cartão de encaminhamento em 11 de dezembro, postou no dia
seguinte. Comprovei pelo carimbo de postagem. E só agora, quase dois meses
depois, recebi a correspondência, que mostra que os serviços postais não são
dos mais comprometidos. Ao menos não com o tempo. Afinal, os latinos ensinaram
que “côngruo tempore et congruo loco”, ou desmistificado o latinório: “em tempo
e lugar certos”. Mas chegou, até que enfim.
Tirado este desagrado, venceu a
alegria de poder conversar com Hugo, escritor do qual privo a amizade há mais
de trinta anos. Considero-o, na verdade, um irmão. Fraternidade advinda dos
ares que também respiro. Ares da Passagem do Rio Verde dos Sagrados Corações de
Jesus, Maria e José, amiudados como Três Corações, cidade onde o poeta nasceu.
Ares da Paragem do Rio Verde de Nossa Senhora da Conceição, hoje Conceição do
Rio Verde, onde o poeta viveu a infância.
Atualmente, e faz tempo, ele convive
com novos ares e com as águas sulfurosas dos Poços de Caldas, província da qual
ele é cidadão honorário e emérito. Lá ele casou-se, teve filhos, lecionou e
escreveu. E escreve. Escreve muito, uma incansável e diversificada produção
literária. Hugo Pontes é dos maiores nomes da “mail art”, poeta, historiador e
biógrafo. Obrigado, amigo Hugo Pontes, pela gentileza. A obra encaminhada será
de grande valia para as minhas pesquisas. Estimula, a sua generosidade, o nosso
interesse pela história regional, além de acrescentar à sua gentileza nata.
Conheço o poeta Hugo Pontes há
décadas. Ele foi parceiro constante, quando realizamos os Encontros de Escritores
Mineiros. Acho que Hugo foi o único escritor mineiro (e nacional) a participar
das 10 versões do evento, contribuindo com suas ricas palestras e exposições,
sempre com sua fala mansa, quase acanhada. Trouxe-nos a experiência de
participações em eventos internacionais e nacionais, através das quais ele
construiu um legado que faz da sua bibliografia das mais expressivas e
representativas da inquietude literária mineira.
Desde a década de 1960, Hugo Pontes é
expoente do movimento que dinamizou o poema-processo no país, aproximando-se de
grupos literários de Cataguases e Oliveira. Na década seguinte, dedicou-se ao
poema visual, do qual é dos nomes mais representativos nacionalmente. Números
expressivos, ele os detém, principalmente com a participação ativa em mais de
500 exposições nacionais e internacionais, do movimento que ele representa como
papa da poesia visual e postal. Por isso e por eficiência, não poderiam os
Correios ter cometido tamanha injustiça com o poeta. Afinal, ele é constante
aliado da Arte Postal.
Com atraso do qual não sou culpado,
obrigado, poetamigo. Sua consideração animou minha manhã, não a ponto de me
efervescer para os festejos carnavalesca, mas a ponto de animar minha
sensibilidade, que às vezes se amarfanha.
Aos esquecidos, lembramos as
principais obras de Hugo Pontes:
- Defesa de tese (1997);
- Guimarães Rosa, Uma Leitura
Mística(1998);
- 110 anos de Imprensa Poços-caldense
(1999);
- O Barracão da Discórdia (2001);
- Léo Ferrer em Vida (2002);
- O Congado em Oliveira (2003);
- A Poesia das Águas - Retratos
Escritos de Poços de Caldas (2005);
- O Teatro de Poços de Caldas (2006);
- Poemas Visuais e Poesias (2007);
- Minas em Pedaços: Os Movimentos
Separatistas nas Gerais (2010);
- A Literatura Poços-caldense desde
as Origens - 1872-1913 (2013).
O poeta diz, em defesa do poema
visual, que “Ver é um processo natural, ler é um aprendizado formal.” A obra de
Hugo Pontes ensina mais: que ver e ler administra a sensibilidade dos homens,
ultimamente tão deseducada e indiferente.
(Cruzília, 1º de fevereiro de 2023)
Adolfo Mauricio Pereira
IMAGENS: Poeta Hugo Pontes e um dos
seus poemas visuais. Jornal de Poesia. Reprodução.
Autocrítica de 2018 para ser lida em voz baixa.
Dou pasárgadas largas, dou pasárgadas curtas, mas
não tem jeito; meus poemas são tropeços.
José
Antônio Cavalcanti
ADMIRÁVEL MUNDO DAS PEQUENAS CRIATURAS
por Paulo Lima
Você devia ler este livro.
A recomendação veio da minha mulher, bióloga de
profissão e devoção.
Olhei o livro de soslaio e pensei na pilha de
outros livros que aguardam minha leitura.
Devo dizer que o único inseto que despertou meu
interesse de leitor até hoje foi o que se apossou de Gregor Samsa. A
metamorfose kafkiana me causou iguais reações de fascínio e repulsa. Nenhum
leitor passa impune pela novela de Franz Kafka.
Notando meu minguado interesse, minha mulher
reforçou a sugestão: você pode criar histórias para crianças a partir da vida
desses insetos.
Insetos voejaram na minha imaginação. Peguei o
livro: "Planeta dos insetos", que saiu pela Matrix, em tradução de
Leonardo Pinto Silva. Sua autora, Anne Sverdrup-Thygeson, é uma professora de
Biologia norueguesa.
As informações impressionantes que ela transmite
com muita graça representam um primor de divulgação científica sem cientifiquês.
"Para cada ser humano vivo hoje na Terra
existem mais de 200 milhões de insetos", começa explicando Anne Sverdrup.
200 milhões! Já imaginaram uma Revolta dos Insetos
à maneira dos animais da fábula política de George Orwell?
Melhor não pensar, até porque toda essa
"insetolândia" é composta em boa medida de habitantes benignos que
não fariam mal a ninguém, muito menos a uma mosca, é claro. Os insetos, ensina
Anne Sverdrup, têm a missão de fornecer alimentos, despoluir o meio ambiente e
oferecer de mel a antibióticos.
As curiosidades sobre os insetos se multiplicam a
cada página. É todo um admirável mundo novo dessas pequenas criaturas que se
abre. E o livro mal começou a agitar suas asinhas. Avanço, maravilhado, na sua
leitura.
Já sou capaz reconhecer a importância fundamental
dos insetos na teia da vida. Sei, portanto, que as pessoas deveriam ter mais
cuidado quando se predispõem a querer esmagar um desafeto "como a um
inseto". Duzentos milhões deles, com suas importantes funções biológicas,
as observa.
Jean-Michel Basquiat
Kings of Egypt II 1982
Material and technique
Oil on canvas
Height 183,5 cm
Width 183,5 cm
Depth 4 cm
Boijams Beuningen Museum
eco
olhou de soslaio para o espelho. o que era dele estava guardado.
Mara
Magaña
imagem: laborama
compreendo tuas passagens
as forças do hábito
e mudanças de humor repentinos
ainda caminhas nas ruas de São Paulo
com tuas distrações de criança
pelo bairro da Liberdade
no sombrio corredor do 13º andar
carregas o peso na mochila
a história da família
e um pacto mudo entre irmãos
todos levam o silencio do medo
emociono-me ao lembrar da tua coragem
depois de tudo encaras a vida de frente
(lembrei quando perdeu a sorte
e a paz de um céu absoluto)
só tua valentia há de tornar os dias mais
tranquilos
agora festejamos a pura simplicidade que extasia
e por dentro tua essência ilumina
Benette Bacellar - 2024
Photography by Eric Forey
Luiz Rufino
O que marca o nosso tempo? Essa é uma
das perguntas que tenho feito e refeito durante alguns anos de estudo. Em textos,
aulas, palestras e debates públicos tenho exposto essa pergunta e chamado
parcerias do pensamento para adentrarmos essa mata. Certa vez, sentado na
esteira ouvindo os mais velhos escutei que Exu vendo as injustiças causadas
pelos homens parou o tempo para arrumar o mundo. Exu, que está em tudo e em
tudo está, logo viu que os tempos são também as pessoas, seus fazeres, elos,
memórias e as coisas que acontecem no mundo. Assim, resolveu não mais pará-lo,
mas estar em todos os espaços fiscalizando as ações de cada ser no tempo. Os
mais velhos também contam que Orunmilá-Ifá, memória, inteligência e sabedoria
de Olodumare, guarda o ontem, o agora e o amanhã. Por ser a própria presença de
Olodumare inscrita no tempo, Ifá não só conhece, mas implica todas as
possibilidades de ser no tempo. Por isso, uma das grandes dádivas de Olodumare
deixada para a criação é poder acessar Orunmilá via o oráculo de Ifá, pois ali
se pode ter contato com o espírito que alcança o saber dos tempos e ouvir
atentamente os conselhos que nos ajudam a nos refazer para além daquilo que
enxergamos. Os velhos mestres da capoeiragem firmaram a máxima: "todo
tempo não é um". O mestre e amigo Antônio Bispo dos Santos, que roçou
afeto, cisma e netos dizia que os confluentes são íntimos e enredam amizade com
o tempo e não com o horário. Hoje estamos assombrados pelo consumo e produção
que nos vê como máquinas que correm contra o tempo. Assediados pelo excesso de
"sim", que não negaceia e por isso não ginga, não fazemos
contratempo, vamos tocando nossa vida aparelhados com equipamentos que medem
passos, despertam para horários e organizam nossas agendas, mas ainda não são
capazes de bordar experiências. Minha avó dizia: não se briga com o tempo. É
possível termos relações com o tempo que não o perceba como uma coisa só? Sim.
Entretanto, para alargar a noção de tempo caberá também nos sentirmos como algo
maior do que somos. Talvez, seja esse o principal ensinamento do tempo quando
se faz gira. Nos contar no toque suave que todo tempo não é um. @rufino.luiz7
CRITÉRIOS DA SAUDADE
Há uma saudade feito lâmina
que, além da alma,
também dilacera o corpo,
escancarando dores desconhecidas.
Outra saudade divisora de sentidos
é aquela que se pendura, aleatória, muitas vezes
constrangida,
entre fios tênues de um olhar perdido
à procura dos já findos:
um alguém, um desejo, uma sede, um resquício.
Há aquelas bem mais urgentes,
necessárias, mas incoerentes,
nas ranhuras que se desenham - repentinas - entre
as unhas
a demarcar terrenos improváveis ao desmantelo do
coração.
Ainda suplicam saudades outras
- bem distantes -
teimosas, itinerantes, quase peregrinas,
que se vão como em fases,
que ora trazem de volta alguma de suas faces,
ora fogem sorrateiras nas lonjuras escuras do
inconsciente.
De todas elas
tenho afeição primeira
por uma saudade ainda sem classificação:
gosto mesmo da saudade que se derrama
entre uma de mim que já fui
e aquela que sonhei.
(Nic Cardeal/2022)
Carta de Li Po à Lua
Contemplo a imagem sobre o lago, só um reflexo.
Iludo-me dizendo a mim mesmo "é ela, a própria, alcancei-a". Quem
diria.
Na noite seguinte retorno ao mundo líquido,
saudoso de sua luminescência e, inacessível, lá do alto, assombra-me o seu
fantasma enquanto insinua "és tu o verdadeiro espectro."
Silente, ao recolhimento torno, consciente de que
só em sonho tocarei seu âmago de precioso jade."
Cleber Pacheco
(Livro publicado em 2011).
Retirei estas pedrinhas que vieram
incrustadas no solado emborrachado dos sapatos usados na viagem ao Piauí,
coloquei-as num minúsculo envelope de plástico transparente. Uma etiqueta as
identifica. Estavam no meio do caminho e eu não as percebi. Agora, sob minhas
vistas cansadas, permanecerão a lembrar, a lembrar...
Dalila Teles Veras
— em Santo André, São Paulo.
Como disse
Drummond:
Quem teve a ideia de cortar o tempo em fatias,
a que se deu o nome de ano, foi um individuo
genial.
Industrializou a esperança, fazendo-a funcionar no
limite da exaustão.
Doze meses dão para qualquer ser humano se cansar
e entregar os pontos.
Aí entra o milagre da renovação
e tudo começa outra vez, com outro número
e outra vontade de acreditar que daqui para diante
tudo vai ser diferente.
Para você, desejo o sonho realizado,
o amor esperado,
a esperança renovada.
Para você, desejo todas as cores desta vida,
todas as alegrias que puder sorrir,
todas as músicas que puder emocionar.
Para você, neste novo ano,
desejo que os amigos sejam mais cúmplices,
que sua família seja mais unida,
que sua vida seja mais bem vivida.
Gostaria de lhe desejar tantas coisas...
Mas nada seria suficiente...
Então desejo apenas que você tenha muitos desejos,
desejos grandes.
E que eles possam mover você a cada minuto
ao rumo da sua felicidade
E que venha 2024!
Décio Sousa
P. Klee
Caderno rosa
Você sabe
por que vive
a língua morta?
Eu quando tive
a casa certa ela era torta,
meu amor.
E dentro de casa,
do que corre o corredor?
E fora dela,
por que duas asas
ao beija-flor?
Eu inteiro
já fui no meio
um balão de sonhos,
meu amor.
Hoje nem cheiro,
nem veio,
nem vou.
Você sabe
qual melhor dia
para viver?
Não vale ontem
nem amanhã,
fica fácil de escolher.
No caderno rosa
que mata e me consome,
tinha uma flor.
Nem verso nem prosa,
nele só havia o seu nome,
meu amor.
Você sabe
por que vemos
o que não mais existe?
E por que
a vida fica menos triste
vendo o sol se por?
Juro, quando eu tive
a lua cheia era crescente
o meu amor.
(André Bolívar)
menina dos brincos de pérola
José César
Castro
transpiração gráfica aos olhos de Wermmer
Mãe
Um dia,
minha mãe me falou:
- Você não é minha filha.
Você deve ter nascido,
de uma chocadeira.
Então...
Criei asas e voei.
Virei Águia.
Fiz meu próprio ninho,
meu destino.
Além de mim
Quero apenas
Além de mim, quero apenas
essa tranqüilidade de campos de
flores
e este gesto impreciso
recompondo a infância.
Além de mim
- e entre mim e meu deserto -
quero apenas silêncio,
cúmplice absoluto de meu verso,
tecendo a teia do vestígio
com cuidado de aranha.
Olga
Savary, em "Repertório selvagem: Obra Reunida". Rio de Janeiro:
Biblioteca Nacional; MultiMais Edições; Universidade de Mogi das Cruzes, 1998.
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